Não há quem negue a importância do barco moliceiro na promoção da região da ria em geral e da cidade de Aveiro em particular. Em 2017, "as 27 embarcações típicas da ria" (a maioria moliceiros e alguns mercantéis) que navegam nos canais urbanos da cidade de Aveiro transportaram, segundo as contas do presidente da Câmara, Ribau Esteves, "um milhão de pessoas", que assim descobriram os edifícios Arte Nova, as salinas e outras atrações. Geraram um "volume de negócio de oito milhões de euros", estima o edil.
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Virgílio Porto, presidente da recém-criada associação Laguna de Aveiro, que agrupa mais de metade dos operadores turísticos nos canais, diz que quem embarcou foram sobretudo espanhóis e portugueses, mas também há franceses, holandeses, asiáticos e turistas de outras nacionalidades. Na cidade de Aveiro, a atividade criou "cerca de 150 postos de trabalho" diretos. E a reboque "cresceu a restauração, hotelaria, lojas, artesanato e outras atividades".
Nada mau para um barco que, há poucas décadas, teve quase uma sentença de morte assinada, com a maioria deles a apodrecerem nas margens da ria. Senos da Fonseca, autor da obra "Embarcações que tiveram berço na laguna - arquitetura naval lagunar", foi à capitania buscar registos que permitem perceber a dimensão da atividade económica no passado e a extinção iminente nos anos 90 do século XX: "Em 1889 estavam registados na capitania do porto de Aveiro 1749 moliceiros. Em 1975 eram 30. Em 1998 apenas dois".
"Se não se tivesse iniciado a atividade turística em Aveiro, teriam ficado apenas alguns para quem tivesse gosto e meios de os sustentar ou seria já apenas uma relíquia de museu", admite, por sua vez, Paulo Morgado, da Associação para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro. Mas o enclausurar dos moliceiros nos canais urbanos, que ajudou a salvá-los, teve consequências.
Canais urbanos obrigaram a introduzir mudanças
Para se perceber isto, é preciso saber que o moliceiro original andava sobretudo em ria aberta, velas hasteadas, a viajar entre Ovar e a entrada de Mira. Na cidade de Aveiro, quem navegava eram os mercantéis (saleiros) que transportavam o sal das salinas. Por isso, quando se adaptaram os moliceiros aos canais urbanos, foi preciso fazer mudanças: caíram os mastros, as proas cortaram-se mais abaixo para dobrar ao passar nas pontes e atingiram-se alguns painéis, aumentou o tamanho, criaram-se bancos e colocaram-se os obrigatórios apetrechos por causa da segurança dos turistas, entre outras coisas.
Os moliceiros fora dos canais têm dificuldades em sobreviver, como comprovam, mais uma vez, os números. Barcos originais, a poderem hastear a vela e participar nas três regatas existentes, "restam 10", menos de metade dos que andam nos canais, conta Etelvina Almeida, uma designer apaixonada pela ria. Pertencem a pescadores, construtores de embarcações e familiares de moliceiros que mantêm o "vício" e os sustentam a custo. Alguns fazem passeios, mas não são atividades a tempo inteiro. O facto de só poderem transportar 12 pessoas, por não beneficiarem do regime de exceção que permite aos moliceiros dos canais levarem entre 20 e 22 pessoas, encarece ainda mais a atividade. E estarem longe do centro urbano e de bons acessos aumenta as dificuldades.
Chamam-nos capitalistas, mas nós também queremos os barcos o mais fiel possível, só que têm de ser adaptados à nova realidade com menos burocracia
Nos canais urbanos, o setor enfrenta dificuldades como "taxas elevadas, legislação desajustada e falta de mão de obra com os requisitos necessários para navegar", mas faz planos para o futuro, desvenda Virgílio Porto. "Estamos a trabalhar para colocar os barcos a navegar nos canais com mobilidade elétrica", uma realidade que esperam alcançar no próximo ano, altura em que as concessões da Câmara voltam a estar em cima da mesa. "Chamam-nos capitalistas, mas nós também queremos os barcos o mais fiel possível, só que têm de ser adaptados à nova realidade com menos burocracia", assegura Virgílio Porto.
Quem navega nos canais, alheio a estas questões, quer um produto genuíno. Manuel Raimundo veio do Brasil para passear e garante que o melhor é "um barco original. Não precisa mudar nem meter muito luxo se não perde a graça e estraga". Ludivine Theret, Blandine e Elodie Saint-Amans, três amigas francesas de visita a Portugal, também embarcaram com a "Viva a Ria" e ficaram deslumbradas com o passeio de 45 minutos pelos canais do Côjo, das Pirâmides e de S. Roque, num barco que preferem "tradicional".
Os poucos construtores que ainda os sabem fazer, confirmam que a maioria dos serviços que realizam são reparações para quem navega em Aveiro. Há medo que o saber da construção, por falta de seguidores, termine. Marco Silva, de 42 anos, é uma "lufada de ar fresco", pois "a maioria dos mestres tem muita idade", diz o vice-presidente da Câmara da Murtosa, Januário Cunha.
Foi para preservar esse saber que a Câmara fez um estaleiro museu na Torreira, onde trabalha o mestre José Rito. E é por isso que avança para a sua ampliação, indo ao encontro dos pedidos do mestre, que lamentava não ter um espaço onde coubesse um barco de grande dimensão. A obra deverá ficar pronta em 2019. "Terá um estaleiro maior a norte, o atual será espaço de exposição de miniaturas, artefactos, imagens e multimédia", explica Januário Cunha.
Candidatura a Património
Em Estarreja, outro grande polo de construção ficará concluído, este ano, o Centro de Interpretação da Construção Naval, no barracão da Ribeira da Aldeia. Para além da preservação da memória, o espaço quer incentivar "a introdução de processos inovadores" ao mesmo tempo que "preserva técnicas tradicionais", diz a vereadora Isabel Simões Pinto, apontando como exemplo a "navegação num moliceiro movido a energia elétrica".
Pela região há vozes que se erguem a pedir a coordenação de entidades para avançar com o pedido de classificação do moliceiro, ora como Património Nacional, ora como Património Mundial da UNESCO. "Com os seus quatro painéis, o barco moliceiro é uma manifestação única no Mundo e merece ser valorizado como património da UNESCO", advoga Clara Sarmento, autora do livro "Os moliceiros da ria de Aveiro - quadros flutuantes" e "Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa - o barco moliceiro". A candidatura deveria contemplar vários aspetos, desde a construção à arte de velejar, aos painéis e a importância histórica, social e económica, completa Ana Maria Lopes, autora de "Moliceiros - a memória da ria"