Pertencem a gerações diferentes - ela tem 27, ele 40 -, partilham preocupações ambientais, divergem no resto. A social-democrata chega com curiosidade. Interpela sobre a pegada ecológica, sobre a Venezuela, sobre a URSS. Sobre um possível "Portugalexit". Nada que o comunista não espere. Das perguntas pessoais foge. Acordado o tratamento por tu, Lídia Pereira abre as "hostilidades".
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Lídia Pereira (LP) Eu vim de transportes públicos e tu?
João Ferreira (JF) Nesta fase da campanha, com o tempo já muito contado, não dá para andarmos de transportes públicos. Mas é curioso, venho de uma iniciativa de reformados e pensionistas em Setúbal, onde encontrei pensionistas e reformados também de Lisboa. Disseram que resolveram experimentar o novo passe social. Que agora, por ser mais barato, lhes permitiu ir a Setúbal.
LP: Era bom que reformados de outros pontos do país pudessem usufruir desse benefício. É importante garantir que há coesão territorial nestas medidas, não achas?
JF: Sem dúvida. Apesar de neste momento estar já abrangida uma população significativa - estamos a falar das principais áreas metropolitanas - são medidas que devem estender-se todo o país. Aliás, é com medidas como esta que se combatem, em concreto, as alterações climáticas. O caminho passa por uma mudança de paradigma no que à utilização de transporte individual vs transporte coletivo diz respeito.
O Parlamento Europeu tem sido muito prolixo em recomendações sobre alterações climáticas, focado sobretudo no carro elétrico sem pôr, no entanto, em causa o paradigma da prevalência do transporte individual. Assim, o problema não se resolve.
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Oportunidade e negócio
LP: A questão do transporte público é fundamental. E se quisermos remar na mesma direção temos de convocar todos os agentes da sociedade, sobretudo as autarquias. Nesta matéria, e para a definição de uma estratégia que nos ajude a cumprir metas que são globais, o poder local é essencial.
JF: Absolutamente de acordo. A política pública tem um papel determinante. Tenho reparado que vocês (PSD) têm falado bastante nas alterações climáticas. É um tema a que temos dado grande atenção ao longo destes anos no Parlamento Europeu, discordando da abordagem oficial à problemática, muito focada em metas que, por si, só dizem pouco, e que descuram os meios para as alcançar. Por exemplo, se queremos que a temperatura não aumente mais que um grau e meio, temos de tomar medidas que nos permitam supor que, apesar de toda a incerteza associada aos sistemas climáticos, isso vai acontecer. A União Europeia tem falhado muito.
LP: Discordo. A União Europeia conseguiu ser determinante na assinatura do acordo de Paris, assumindo um papel importante a nível internacional.
JF: O acordo de Paris tem enormes insuficiências: fixou-se no objetivo que era indiscutivelmente muito importante, mas esqueceu tudo o resto: os meios para lá chegarmos. Como não temos um termóstato, é preciso pensar em formas de reduzir a emissão de gases com efeito de estufa.
LP: Não achas que temos aqui uma oportunidade? Há um discurso algo catastrofista relativamente às alterações climáticas por causa dos empregos. Que vão comprometer postos de trabalho. Não vês aqui uma oportunidade para criaremos novos empregos, num esforço que envolva empresas, Estado, autarquias, associações? Eu vejo.
JF: Isso pode acontecer e, num certo sentido, até é desejável. Porém, fazer das alterações climáticas uma oportunidade de negócio esquecendo o objetivo ambiental que é reduzir a emissão de gás com efeitos estufa, não. Dou-te ume exemplo: mercado do carbono - foi um fracasso total. A principal abordagem para conseguir reduzir a emissão de gases de efeito estufa foi a instauração de um regime de comércio de licenças de emissão, uma abordagem de mercado que se revelou totalmente ineficaz. E perversa. A dado passo, tiveste uma situação em que, para os grandes poluidores, era muito mais barato comprar licenças para poluir do que investir em tecnologias que permitam reduzir as emissões. Deveríamos tirar ilações disto. Outro exemplo: a desregulação e a liberalização do comercio internacional.
LP: O comércio é uma das competências exclusiva da União Europeia.
JF: Infelizmente.
LP: Felizmente. Tendo a União Europeia um papel fundamental na questão do ambiente, tem conseguido colocar nos contratos assinados com outros parceiros internacionais requisitos concretos e realistas de proteção ambiental. É nessa intervenção que me revejo.
JF: Isso é muito bonito do ponto de vista de um discurso justificativo da liberalização do comercio internacional. Mas, na prática, os acordos de comércio não têm estabelecido standards elevados de proteção ambiental ou até de proteção social. Pelo contrário. Os standards diminuíram.
LP: Nos contratos assinados entre a União Europeia e parceiros internacionais temos visto requisitos de respeito pelo ambiente e pelos direitos humanos. Portanto, acho que aqui tem tido um papel importante. Aliás, o comércio livre tira da pobreza muitas pessoas.
JF: E arrasta muitas para a pobreza.
LP: Precisa de ajustes, naturalmente, estão a ser feitos e essa é a função do capitalismo. Os direitos humanos e a dignidade da vida humana são valores fundamentais da União Europeia.
JF: Nos tratados, são muitas vezes letra morta.
Perguntar não ofende
LP: Na lógica dos direitos humanos, não resisto a perguntar-te: e a Venezuela? Coreia do Norte ou Coreia do Sul? Estados Unidos ou Cuba?
JF: O projeto de democracia que tenho para Portugal, e que está vertido no programa do PCP, é o de uma democracia avançada no plano político, social, económico e cultural. O modelo em que me revejo afasta-se dessas várias experiências que referiste. Tem uma visão própria sobre a construção de uma sociedade socialista.
LP: Reconheces, então, que tens sérias dúvidas relativamente aos regimes venezuelano ou coreano?
JF: Acho que cada povo deve ter direito a seguir os caminhos que livremente entenda.
LP: Mas as pessoas querem transitar para regimes mais liberais.
JF: Em Portugal, com o Governo PSD/CDS, que considerarás de inspiração liberal, saíram 500 mil pessoas do país à procura de emprego que não encontravam cá. Ia até perguntar-te até se não serás uma das jovens que o Pedro Passos Coelho mandou emigrar.
LP: Saíram no Governo PSD/ CDS e continuam a sair. Mas viste as imagens da Venezuela na última semana? Um Estado contra as pessoas.
JF: Temos visto muitas imagens, desse e de outros países, nem sempre com correspondência rigorosa. Já vimos imagens da Porta do Sol, em Madrid, uma enorme manifestação com a legenda "Caracas". No caso da Venezuela, é já que estamos a falar do Parlamento Europeu e da União Europeia, acho que as sanções, que tiveram o voto favorável do PSD, pesam muitíssimo na situação difícil que lá se passa.
LP: O que achas que deve ser feito para pacificar o país? Não chegou a altura de mudar de regime?
JF: É uma decisão que cabe aos venezuelanos. Não ao Sr. Trump ou ao Sr. Bolsonaro.
LP: Como olha o PCP para as queixas daquelas pessoas? Culpando as sanções recentes?
O nosso projeto de sociedade é de abundância e de justiça para todos. E, portanto, não nos revemos numa situação em que pessoas passem dificuldades, como aconteceu em Portugal entre 2011 e 2015. Realidades que julgávamos há muito ultrapassadas sentarem-se à mesa de muitas famílias. A fome, por exemplo.
LP: Não compares. Em Portugal foi situação de emergência, num determinado contexto.
URSS e UE
LP: Fizeste Erasmus? Se tivesses tido a oportunidade, terias feito?
JF: Indiscutivelmente.
LP: Então gostas da mobilidade que a União Europeia nos proporciona?
JF: Não defendemos o isolacionismo. Defendemos uma aproximação entre os povos e os países, um projeto de integração e de cooperação, mas uma cooperação solidária, nos antípodas do que é a União Europeia. A União Europeia não é o primeiro projeto europeu de integração de estados. E não será o último, nem é o único possível. Tem inscritos princípios capitalistas dos quais eu discordo
LP: Nos últimos 50 anos, o capitalismo tirou milhões de pessoas da pobreza. Em todo o mundo.
JF: E quantas arrastou para a pobreza?
LP: Não estou a dizer que é um sistema perfeito, mas se comparáramos com a União Soviética... Não queiras comparar o regime de Estaline com o modelo social europeu que vivemos. Aí estamos em pontos opostos.
JF: A primeira vez que o homem tentou pôr uma máquina a voar nos céus não correu bem. Hoje, todos os dias os aviões cruzam os céus. A primeira experiência de uma construção de uma sociedade socialista foi isso mesmo. Teve coisas tremendamente positivas, cujo impacto ainda hoje sentimos mesmo nas sociedades capitalistas - direito a férias, subsistemas de segurança social, a ideia de que saúde é um direito a que todos devem poder aceder independentemente da situação económica, a educação - e teve coisas que correram mal. Não vamos negá-lo. Porém, o capitalismo tem demonstrado e há muito mais tempo que não responde às necessidades.
LP: Tirar milhões da pobreza é um bom sinal.
JF: Isso não é matéria de facto. É matéria de crença.
Hobbies, não, brexit, sim
LP: João, além da política quais são os teus hobbies.
JF: [Sorri] Que achas do Brexit?
LP: [Ri] Não vais responder, não é? Vamos ao Brexit, uma situação política triste para a União Europeia. Ainda tenho esperança de que aconteça um recuo ou um segundo referendo porque, de facto, as circunstâncias em que as pessoas votaram em 2016 são manifestamente diferentes das de agora. Três anos depois, provou-se que ninguém tem a coragem política de pôr um ponto final. Preocupa-me que seja uma saída que diga muito às novas gerações. Infelizmente, muitos jovens não foram votar. Se calhar achas muito bem a saída do Reino Unido.
JF: Ao contrário de outros partidos em Portugal, não fizemos campanha. A decisão coube, e cabe, ao povo do Reino Unido. Por isso, entendemos que essa decisão - que foi a da saída - deve ser respeitada.
LP: Mas concordas comigo quando digo que a campanha foi feita com base em supostos factos?
JF: Aos longo dos anos, tenho assistido a algumas campanhas na União Europeia. Nessa do Reino Unido tens argumentos falsos e mentiras dos dois lados. No segundo referendo do Tratado de Lisboa na Irlanda, viste circular mentiras, difundidas pela própria comissão, tão grosseiras quanto as que circularam no Reino Unido.
LP: Achas que as pessoas que foram votar em 2016 tinham consciência do que os esperava?
JF: Pensar que os 17 milhões britânicos votaram favor da saída do Reino Unido da União Europeia são todos velhos, reacionários, conservadores racistas e xenófobos é um erro tremendo. Alguns serão, mas o resultado do referendo resulta também de um conjunto de contradições que atravessa a União Europeia. As pessoas sentem que já não controlam aspetos fundamentais das suas vidas e que política da União não lhes melhora a vida. Pelo contrário: degrada.
LP: És favorável a um Portugalexit?
JF: Ocupo pouco o meu espírito com questões que não estão em cima da mesa.
Bruxelas
No dia em que Rui Rio anuncia o sentido de voto do grupo parlamentar do PSD na questão da contagem de tempo dos professores, João Ferreira desafia Lídia Pereira a ir por aí. Ela, porém, insiste em perguntas mais pessoais.
LP: João, estudaste o quê?
JF: Sou biólogo, trabalhei durante dez anos em biologia, no setor público e privado, na investigação, na consultoria, nas áreas do ambiente. Ao fim de dez anos, fui para o Parlamento Europeu. Já lá vão também dez anos.
LP: Até quando?
JF: No PCP, os mandatos de cargos públicos e institucionais estão sempre à disposição do coletivo partidário. É a garantia de que estamos no desempenho desses cargos com total desprendimento do ponto vista pessoal. Dentro dessa condição que respeito, a perspetiva será o mandato a que estou a candidatar-me.
LP: Estar no Parlamento Europeu significa viajar muito. As viagens constantes não são boas para a pegada ecológica.
JF: Pois não são, mas não podemos ir de comboio.
LP: Temos de começar a ir de bicicleta.
JF: Os jovens seguidores da Greta Thunberg foram ao Parlamento Europeu e decidiram que não se podia ir de avião. Só de comboio. O que nos deixa de fora.
LP: Diz-me uma curiosidade sobre o Parlamento.
JF: [ri] No plano político, foram poucas, muito poucas, as vezes em que os deputados portugueses de todos os partidos estiveram juntos numa mesma votação. Lembro-me da questão dos incêndios da Madeira, por exemplo. No plano pessoal, e apesar de haver naturalmente deputados mais ou menos próximos, as relações dão-se, em geral, nos limites da urbanidade e da cordialidade. A maior curiosidade é que é um sítio onde se pode trabalhar muito.