A coordenadora do BE, Catarina Martins, fez este sábado o seu discurso de despedida, antes de ser substituída por Mariana Mortágua. Ovacionada de pé pelos mais de 600 delegados, reconheceu que o mau resultado nas legislativas de 2022 "deixou feridas", mas não se arrepende de ter cortado com um PS que, disse, recorreu a uma "artimanha" para pôr fim à geringonça. Ainda assim, deixou a porta entreaberta a um novo acordo que una a Esquerda, desde que baseado num "acordo transparente" e por escrito.
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Na XIII Convenção do BE, Catarina Martins elencou alguns "problemas estruturais" do país, como a desigualdade, a precariedade ou os baixos salários. Considerou que todos eles têm sido "agravados" porque "o PS, com maioria absoluta, achou que chegara o seu momento cavaquista".
"A maioria absoluta do PS é tudo o que se podia esperar de uma maioria absoluta", prosseguiu a coordenadora cessante. Num discurso com muitas críticas aos socialistas, acusou António Costa de ter obtido esse resultado com recurso à "artimanha" de recusar qualquer cedência à Esquerda. O objetivo, alegou, era "provocar uma crise política" e forçar eleições.
Mas agora, pouco mais de um ano após a ida às urnas, António Costa "não sabe o que fazer" com a maioria absoluta, vincou Catarina. "O Governo pouco faz e não tem desculpa nenhuma: pediu todo o poder de uma maioria absoluta e, num ano e meio, desbaratou a confiança de boa parte dos seus eleitores", referiu.
No entender da coordenadora do BE, o atual PS limita-se a "encenar confrontos vazios com a Direita, enquanto lhe copia as políticas". Em concreto, argumentou que os socialistas se preparam para "deixar tudo na mesma" em matéria de habitação, entregam "uma parte cada vez maior do orçamento do SNS aos privados" e, ao mesmo tempo em que "gritam contra a extrema-direita", privam o país "de um projeto de democracia e de Estado em que se possa acreditar".
Catarina classificou mesmo o PS como "padrasto" da extrema-direita: "Ao negar as condições concretas do salário, do serviço público, da habitação, ao fazer dos serviços secretos um misterioso joguete, ao propor restrições constitucionais perigosas, o PS está a contaminar todo o debate democrático e a estender a passadeira ao regresso dos piores fantasmas do passado", sustentou.
Geringonça no futuro? BE é "coerente" e quer "toda a força da Esquerda junta"
A Oposição interna acusa a direção de não esclarecer se defende - e em que moldes - uma eventual futura geringonça. Talvez por isso, Catarina Martins levantou um pouco o véu sobre o que defende relativamente a essa matéria, afirmando que foi a "coerência" que, em 2015, levou o BE a "salvar o país da Direita" e a assinar um acordo com o PS.
Foi em nome dessa coerência, lembrou, que o BE sempre exigiu que quaisquer acordos ficassem expressos no papel: "Não nos submetemos nunca à ideia peregrina de que bastaria um 'acordo de cavalheiros' para um compromisso de medidas: tem de haver honra e fidelidade aos acordos na política, mas o povo tem o direito de saber o que vai ser feito, quando e como", referiu. A isso chamou "um acordo transparente para toda a gente conhecer".
Catarina acrescentou que, nesse particular, o BE se mantém onde estava em 2015. "Foi sempre assim: fomos unitários contra o sectarismo e nunca deixaremos de o ser. Queremos toda a força da Esquerda junta, porque não é demais para enfrentar a casta oligárquica que manda em Portugal", afirmou.
Divórcio com PS? "Voltaríamos a fazer o mesmo"
A líder cessante reconheceu que o país vive "tempos difíceis" e que o mau resultado eleitoral em 2022 "deixou feridas" - o BE caiu de 19 para cinco deputados. No entanto, reiterou que não se arrepende da "coerência" que entende ter sido sempre demonstrada pelo partido na defesa dos trabalhadores, dos mais desfavorecidos e dos serviços públicos.
"Fizemos o que tínhamos de fazer e voltaríamos a fazer o mesmo enfrentamento com o Governo nos Orçamentos a propósito da saúde e dos direitos laborais", garantiu, em nova referência ao "divórcio" com o PS. "Faremos o mesmo sempre que nos disserem para escolher entre uma conveniência partidária e o cuidado que a democracia deve ao SNS ou ao direito de quem trabalha", insistiu.
E, embora a queda eleitoral de há um ano tenha sido grande, Catarina acredita que o seu partido já está a recuperar do desaire. Disse já sentir esse crescimento "na rua" e frisou que "até as sondagens já reconhecem" esse fenómeno.
A bloquista fez ainda referência à luta dos professores, considerando que o facto de o "apoio popular" se manter após quase um ano letivo de braço-de-ferro com o Governo "é a prova de que algo está a mudar". Tudo porque o país já se fartou da "chantagem" do Executivo e está hoje "mais exigente", avaliou.
Não é uma "despedida"
Catarina Martins assegurou que o seu último discurso enquanto coordenadora do BE não foi "uma despedida". "Terminou um mandato, continuo a caminhar aqui. Como sempre. E, se olho este percurso, muito mais do que balanço do passado, quero tomar balanço para o futuro", vincou. À entrada da convenção, questionada sobre se irá candidatar-se ao Parlamento Europeu no próximo ano, evitou responder.
A ainda líder relembrou algumas conquistas para as quais o partido contribuiu. Entre elas, mencionou várias mudanças dos tempos da geringonça (como a gratuitidade dos manuais escolares e dos transportes), a lei da eutanásia - a que chamou "Lei João Semedo", em honra do falecido dirigente com quem co-coordenou o partido - ou o avanço nas lutas feministas.
A XIII Convenção do BE coloca frente a frente duas moções que apresentam candidaturas à direção. A moção A, encabeçada por Mariana Mortágua, elegeu 81% dos mais de 600 delegados presentes no congresso deste fim-de-semana. A moção E, cujo porta-voz é Pedro Soares, não foi além da eleição de 14% dos delegados. Os restantes 5% dizem respeito a várias plataformas de cariz local.
À entrada, Mariana Mortágua disse esperar uma convenção com "alegria, força e debate", tendo deixado a resposta às críticas da Oposição interna para a convenção. Mortágua e Pedro Soares apresentam as respetivas moções este sábado, a partir das 14.30 horas.
Pedro Soares já admitiu que não se candidata para vencer, mas sim para forçar o debate e pedir explicações à direção sobre a sucessão de maus resultados eleitorais. Acusa a direção de não fazer balanços nem tirar ilações das opções que conduziram a esse desfecho, criticando também a posição do partido sobre a guerra da Ucrânia.