Prazo legal mais alargado no país vizinho e obstáculos no acesso em algumas regiões podem explicar procura.
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Mais de 600 mulheres foram abortar a Espanha no ano passado, sendo as clínicas mais próximas da fronteira, como as de Badajoz e de Vigo, as mais procuradas. Há várias razões para as deslocações ao país vizinho e uma delas prende-se com o prazo legal para a interrupção da gravidez por opção da mulher, que é mais alargado em Espanha. Os obstáculos no acesso ao aborto em algumas regiões também explicarão porque centenas preferem pagar para fazê-lo fora do país.
Os números não entram nas estatísticas oficiais portuguesas nem espanholas e pecam por defeito. A informação foi recolhida pelo JN junto da Associação de Clínicas Acreditadas para a Interrupção Voluntária da Gravidez (ACAIVE, na sigla espanhola) - que representa 31 clínicas em Espanha - e junto de uma clínica da Galiza, mais concretamente em Vigo.
A pedido do JN, Rita Garcia, presidente da ACAIVE, auscultou as associadas próximas da fronteira sobre o atendimento a mulheres portuguesas. "A clínica de Badajoz recebeu cerca de 500 mulheres em 2021", afirmou a responsável. A de Huelva acolheu 25 e a de Sevilha outras 20 mulheres, acrescentou.
Para ter uma ideia do que se passa mais a norte, o JN contactou duas clínicas acreditadas da Galiza. A Clínica Castrelos, em Vigo, referiu que recebeu 92 mulheres em 2021 para interrupção da gravidez. A da Corunha não respondeu. Somadas as parcelas, são 637 mulheres residentes em Portugal que optaram por sair do país para fazer um aborto, um direito consagrado na lei desde 2007.
Entre 350 e 500 euros
E porquê? Que motivos levam centenas de mulheres a pagar entre 350 e 500 euros (o valor depende do método usado, medicamentoso ou cirúrgico), além das despesas de deslocação, quando o Serviço Nacional de Saúde tem de disponibilizar este serviço gratuitamente?
A questão do prazo legal para pôr termo à gravidez "é uma razão importante", refere Rita Garcia. Em Portugal, o aborto por opção da mulher é permitido até às 10 semanas de gestação, quando em Espanha, o prazo se estende até às 14 semanas. Mas este limite não é a única razão. A presidente da ACAIVE adianta que a proximidade de algumas clínicas da fronteira, como a de Badajoz, justifica parte das deslocações. No SNS 98% dos 14 899 abortos por opção da mulher foram medicamentosos, segundo o último relatório da DGS relativo a 2017. E, segundo Rita Garcia, o exclusivo deste procedimento também pesa na decisão porque em Espanha as mulheres podem escolher o método cirúrgico.
A clínica Castrelos, em Vigo, adianta, em resposta ao JN, que "a grande maioria recorre ao estabelecimento porque passou o tempo legal para aborto em Portugal". Refere ainda que há pacientes que ali vão "por referências de outras mulheres, embora a percentagem seja pequena".
Refletir sobre mudanças
A ginecologista Ana Campos, ativista da Associação para o Planeamento da Família (APF), nota que estes casos são quase desconhecidos porque muitas das mulheres que vão a Espanha nem sequer recorrem aos centros nacionais. Por isso, é importante conhecer e aprofundar os números para o caso de se avançar para uma revisão da lei. Além do prazo legal, "que deve ser alargado para as 12 ou 14 semanas", a médica defende o fim da obrigatoriedade do período de reflexão (três dias) e a imposição legal do aborto ser feito por um médico diferente do que faz a ecografia.
Na última legislatura, entraram dois projetos-lei para alargar o prazo limite da interrupção voluntária da gravidez , mas caducaram.
Quinze anos depois da lei entrar em vigor, a recém-empossada diretora-executiva da APF entende que é o momento de refletir. Começando pelo que está na lei, mas que não tem sido amplamente implementado. Como as dificuldades no acesso, nomeadamente no Alentejo. "É o momento de refletirmos sobre o que conseguimos, o que está a correr menos bem e o que devemos mudar", afirma Rita Fonseca.
Crime
Ministério Público abre 43 inquéritos e faz uma acusação
Em 2021, o Ministério Público instaurou 14 inquéritos pela eventual prática do crime de aborto, dos quais quatro estão em investigação e dez foram arquivados, informou a Procuradoria-Geral da República, sem esclarecer se há arguidos. Em 2020 foram instaurados 29 inquéritos por eventual crime de aborto: dois ainda se encontram em investigação e um teve despacho de acusação. Outros nove foram suspensos provisoriamente e os restantes arquivados.
Lá fora
Limites legais variam
Portugal estabelece as 10 semanas como prazo máximo para a interrupção da gravidez por opção da mulher. É, juntamente com a Croácia e a Eslovénia, dos países da Europa com o prazo legal mais apertado. A Alemanha permite o aborto por opção da mulher até às 12 semanas; Espanha e Roménia até às 14 semanas e França aprovou recentemente o alargamento das 12 para as 14 semanas. Na Suécia o limite legal são as 18 semanas e nos Países Baixos as 22 semanas.
17.º lugar na Europa
Num ranking europeu sobre os países com leis de aborto mais e menos restritivas, atualizado em setembro de 2021 pela federação internacional do planeamento para a parentalidade (IFFP), Portugal recebe 67 pontos, ocupando o 17.o lugar numa tabela com 52 países liderada pela Suécia (94).
O mais permissivo
O Reino Unido é o país mais permissivo nos prazos para interrupção voluntária da gravidez. Pode ser realizado até às 24 semanas, sem qualquer período de reflexão. O Reino Unido e a Finlândia são os únicos países da Europa que permitem o aborto por motivos sociais.
Ainda proibido na UE
Polónia e Malta são os dois únicos estados-membros da União Europeia que não autorizam a interrupção da gravidez por opção da mulher. Na Europa, o aborto é também proibido em Andorra, San Marino e Liechtenstein.