Constitucionalistas alertam: eutanásia em risco de cair numa fiscalização sucessiva
O decreto-lei da eutanásia corre o risco de voltar a esbarrar numa fiscalização sucessiva por não terem sido auscultadas as regiões autónomas, depois de ter sido rejeitado pelo Tribunal Constitucional (TC). O que constitui uma ilegalidade, segundo constitucionalistas ouvidos pelo JN, que alertam ainda para o facto de uma regulamentação demasiado restritiva poder tornar o diploma impraticável ou impossível de aprovar. Quatro dos juízes que votaram vencidos concordam e disseram-no numa carta aberta divulgada esta terça-feira.
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O presidente da República tinha apontado precisamente o problema da ausência de auscultação das regiões autónomas. Mas Marcelo Rebelo de Sousa acabou por não colocar a questão ao TC. "A omissão de audição não gera inconstitucionalidade mas uma ilegalidade. Não há fiscalização preventiva da ilegalidade. Só na sucessiva", explica Paulo Otero.
"O presidente da República até pode vir a promulgar a eutanásia, mas vir a encontrar-se essa ilegalidade numa fiscalização sucessiva", avisa o constitucionalista. "Se isso acontecer, contaminava toda a lei", concorda o constitucionalista Pedro Bacelar Gouveia.
Restringir ou alargar
Paulo Otero e Bacelar Gouveia concordam com as dúvidas do TC quanto ao facto de "sofrimento de grande intensidade" implicar três situações em simultâneo ("o sofrimento físico, psicológico e espiritual") ou só bastar uma dessas situações.
"Fez bem em ser tão minucioso e rigoroso num assunto tão delicado", crê Bacelar Gouveia. "É uma dúvida pertinente", anui Paulo Otero, explicando: "Se as exigências forem cumulativas, a lei será mais restrita. Se cada uma dessas realidades bastar, isso significa que a lei é mais ampliativa".
Pedro Bacelar Vasconcelos discorda. "O Tribunal está a tentar substituir-se ao legislador", acusa o constitucionalista, defendendo que a lei tem que ter margem interpretativa para que "possa ser aplicada a uma infinidade de casos em concreto".
Ao JN, a deputada socialista Isabel Moreira reafirmou que acredita ser possível chegar a um "conceito de sofrimento que não deixe qualquer dúvida". E o presidente da República sublinhou que o TC até ajudou. "Tem feito um esforço muito grande para facilitar a tarefa do Parlamento, explicando qual o caminho que deve ser seguido", destacou Marcelo Rebelo de Sousa.
Juízes do TC contestam
Bacelar Vasconcelos avisa porém, que uma "regulamentação demasiado minuciosa transformaria a aplicação do Direito num processo meramente técnico". "Quanto mais regulamentada estiver, mais apertado será o funil, o que tornará a lei virtualmente impossível de aplicar", aponta.
Para quatro juízes do TC (Mariana Canotilho, António José da Ascensão Ramos, Assunção Raimundo e José Eduardo Figueiredo Dias), a alteração do "e" por um "ou" pode abrir demasiado "o leque" da aplicação da lei e fazer com que surjam novas críticas. "Do exercício de filigrana interpretativa que conduz à decisão resulta um standard de controlo que não se pode cumprir sem risco de abrir novas e distintas críticas à lei, numa espiral infinita de objeções possíveis", advertem, numa carta divulgada pelo Expresso.