Consultas de doenças sexualmente transmissíveis com mais procura e diagnósticos
Em linha com o que se verifica na Europa, número de casos de gonorreia, sífilis e clamídia continua a aumentar. Especialistas defendem campanhas de prevenção e formação nas escolas.
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A procura por consultas especializadas de doenças sexualmente transmissíveis (DST), nomeadamente gonorreia, sífilis e clamídia, continua a aumentar. E, consequentemente, os diagnósticos também. Em linha com o verificado nos EUA e na Europa. Comportamentos de risco, múltiplos parceiros e diminuição do uso de preservativo estão entre as explicações avançadas pelos médicos ouvidos pelo JN. Que defendem campanhas de prevenção, rastreios e educação sexual nas escolas.
Os dados mais recentes são do Centro Europeu para a Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) e dizem respeito a 2019: 1060 casos de gonorreia (ver infografia), ultrapassando-se os 10 casos por 100 mil habitantes, tendo Portugal sido o país que, entre os que reportaram mais de 15 casos por ano, registou o maior aumento face a 2010. Mesmo assim, tal como na clamídia e na sífilis, está abaixo da média europeia.
Não havendo dados atualizados, o JN foi ouvir os responsáveis pelas consultas especializadas de DST a funcionar no nosso país, cujos resultados não podem ser generalizados porque estes atendimentos são procurados por pessoas com maior risco. E que confirmam que a procura e os diagnósticos estão a subir.
Mais DST bacterianas
A funcionar há anos de porta aberta, a consulta no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, registou um "crescimento enorme", explica a diretora do serviço de dermatovenereologia do Centro Universitário Hospitalar Lisboa Central (CHULC). Com acréscimos de 17%, 20% e 4,3%, respetivamente, em 2022, 2021 e 2020. No ano passado, explica Maria João Paiva Lopes, foram diagnosticados 831 casos de gonorreia e 485 de clamídia, numa consulta em que 82% dos utentes são do sexo masculino e 45% de nacionalidade estrangeira.
A mesma tendência verifica-se no Hospital Garcia de Orta: cerca de 1200 consultas no ano passado, com um "aumento significativo de DST bacterianas", nomeadamente clamídia (+78%, 16 casos) e sífilis (+62%, 21 casos), diz o diretor de serviço, João Alves. "Todos temos a noção de que vemos mais infeções, rastreamos e identificamos mais", uma tendência que já se verificava em 2019, afirma, por sua vez, Cármen Lisboa, do Hospital de São João. Concretamente, "mais casos de sífilis resistente e clamídia". Sublinhando, no entanto, que com o "programa Sinave é mais fácil notificar".
As explicações avançadas pelos três especialistas convergem. "A percentagem de doentes que afirma usar o preservativo ronda aos 10%", frisa Maria João Paiva Lopes. Que, além dos comportamentos de risco, identifica ainda "múltiplos parceiros". Numa espécie de baixar de guarda que poderá ter a sua explicação na profilaxia pré-exposição: "Pode haver uma diminuição do uso de preservativo, que pode ser responsável pelo aumento de outras DST", adianta João Alves.
Sabendo-se que "mais de metade das infeções são assintomáticas, é importante haver campanhas de rastreio, principalmente nas pessoas com fator de risco", diz o responsável do Garcia de Orta. Reforçando, e muito, as campanhas de prevenção, sobretudo junto dos mais jovens. "Têm comportamentos de risco por falta de conhecimento. Seria muito útil haver mais informação nas escolas; adolescentes com este grau de ignorância é perigoso e lamentável", avisa a diretora do CHULC.
Task force elaborou normas clínicas, mas covid parou trabalhos
Sociedade de Dermatologia e Venereologia e Colégio da Ordem dos Médicos já alertaram Ministério da Saúde
Face à tendência de subida já na altura identificada, no final de 2019 a Direção-Geral de Saúde constituiu uma task force com a missão de desenvolver um plano estratégico nacional para as infeções sexualmente transmissíveis (IST). Chegando a elaborar as normas de orientação clínica (NOC), sem qualquer feedback. Com a chegada da pandemia, não voltou a reunir-se. Tendo o Governo incluído, no verão de 2021, as IST no programa nacional para a infeção VIH/SIDA. Que, com a ida de Margarida Tavares para a secretaria de Estado da Promoção de Saúde, está sem diretor desde setembro.
Os problemas não se ficam por aqui. Ao JN, João Borges da Costa, médico do Santa Maria que integrou aquela equipa, alerta para o facto de o programa ter passado a incluir as IST, mas não os especialistas que no terreno lidam com elas. "A task force tinha dermatologistas, ginecologistas, infecciologistas, psicólogos e enfermeiros. O problema é que nenhum dos especialistas das IST está na comissão, não está lá ninguém de ginecologia, nem de dermatovenereologia". Tendo isso mesmo sido já exposto, por escrito, ao Ministério da Saúde pela Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia e respetivo colégio de especialidade da Ordem dos Médicos. Até à data, garante, sem resposta.
Trabalho deitado fora
Sobre a task force, João Borges da Costa recorda que "entre a segunda e a terceira reunião chegou a covid", obrigando ao desvio de recursos. Contudo, não consegue "compreender o que se passou após a covid, com o fim dos trabalhos e tudo englobado na comissão contra a sida e as IST".
O diretor de serviço do Garcia de Orta, que também participou na task force, explica que "desde a pandemia não há reuniões, sem as quais as NOC não podem ser aprovadas". Normas que João Alves considera fundamentais, porque, para efeitos de diagnóstico, e em linha com as orientações internacionais, definem testes PCR para a clamídia e gonorreia. Que, neste momento, não são comparticipados. "Mas depois das NOC, o Estado pode decidir ou não pela comparticipação", afirma.
Para o médico de dermatovenereologia, urge "ou reativar a task force ou aprovar as NOC para o mais rapidamente possível se diagnosticarem estas infeções, se fazerem os tratamentos e rastrearem os contactos". Não escondendo, no entanto, a sua frustração, ao recordar que o grupo de trabalho vem de 2019, João Alves reitera a importância dos rastreios serem feitos nos Cuidados de Saúde Primários. O que só poderá avançar com a comparticipação dos testes, explica.
O JN solicitou esclarecimentos e dados ao Ministério da Saúde e à DGS, mas não obteve respostas.
A reter
12
Em 2019, o ECDC registou 12 casos confirmados de sífilis congénita - transmitida ao bebé pela mãe - em Portugal. No ano anterior, tinham sido quatro.
Tempestade perfeita põe EUA e OMS em alerta
Depois de uma diminuição nos primeiros meses da pandemia, com confinamentos generalizados em todo o Mundo, o número de casos de DST não pára de aumentar nos Estados Unidos, estando as autoridades de saúde em alerta. De acordo com dados preliminares do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC), em 2021 os casos de sífilis aumentaram 27,7%, os de gonorreia 2,8% e os de clamídia 3,1%, num total de 2,5 milhões de novas infeções. Consequência do que os especialistas, ouvidos pelo "The Guardian", apelidaram de tempestade perfeita: mudanças comportamentais após o levantamento de medidas restritivas, menor capacidade de testagem, falta de literacia, diminuição do uso de preservativo e um sistema de saúde débil. Sabendo-se que "o que acontece na América do Norte também acontece na Europa", avisa o médico especialista em dermatovenereologia João Borges da Costa. Com a mesma tendência a verificar-se já em Inglaterra, com as mais altas taxas de diagnóstico a registarem-se na faixa etária dos 15-24 anos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) pediu já aos países para que aumentem o financiamento dos seus serviços de infeções sexualmente transmissíveis (IST) e que reforcem os mecanismos de prevenção, testagem e tratamento. "Mudanças importantes são necessárias para acabar com as IST como uma preocupação de saúde pública até 2030", avisou, em setembro, a OMS.