Recriações da Paixão de Cristo cativam anónimos de norte a sul do país durante a Semana Santa.
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Santa Maria da Feira
Perdeu sete quilos na preparação
"O mais importante é acreditar em Jesus Cristo" - as palavras são de Hugo Fernandes, 45 anos, engenheiro industrial, residente em Santa Maria da Feira, a quem cabe a tarefa de "encarnar" Jesus Cristo nas diversas recriações da Semana Santa, entre as quais a via-sacra que, hoje, se realiza na Feira. Mas não foi apenas com fé que se "criou" este "Jesus na Feira". Foi necessária dedicação.
Perdeu mais de sete quilos em apenas dois meses, treinou diariamente uma nova postura corporal, novos movimentos, novas expressões e novos textos. Até a barba não é cortada desde janeiro.
Já depois de ter participado, no passado domingo, na "Entrada triunfal de Jesus em Jerusalém", Hugo confessa-se "exausto". "Não pelo esforço físico, que é reduzido, mas pela intensidade da personagem e pelo significado de cada intervenção", explicou, ao JN.
Garante que está a ser uma experiência "singular e enriquecedora" e lembra que, durante mais de uma década, interpretou o papel de Caifás, o sumo sacerdote que acusou Jesus de blasfémia e ordenou que fosse condenado. Diz não esquecer os olhares de repugnância que o público muitas vezes lhe dirigiu nem os comentários depreciativos motivados pela crueldade do seu personagem.
Agora, na pele de Jesus, "muda tudo, muda do oito para o 80, é começar de novo". Apaixonado pela arte de representar desde tenra idade, afirma que, enquanto ator, "é preciso estudar muito bem o papel. Filmes, documentários e a bíblia", são consultas obrigatórias para interpretar aquele que considera ser o papel de uma "complexidade tremenda".
A caracterização de Hugo, a cargo de Salomé Sousa, responsável pelo guarda-roupa, é uma das tarefas mais exigentes. É preciso no mínimo hora e meia, para dar o máximo de realismo às marcas das chicotadas e feridas (látex, tintas, sangue artificial, sombras, bases, terra). Os materiais têm de secar muito bem para aguentar o impacto das chicotadas e quedas.
Bussaco, Mealhada
Autarca que nunca fez teatro
Desempenhar, na quinta-feira da Ascensão (18 de maio), o papel de Cristo na encenação da via-sacra que decorre na Mata do Bussaco, na Mealhada, vai ser para Ernesto Pereira, 60 anos, um momento emotivo. Residente no Luso, Mealhada, e presidente da Junta de Trezói, no município vizinho de Mortágua, aceitou o convite e o peso da cruz que terá de carregar com respeito.
Ernesto Pereira conhece bem a mata que terá como palco, assim como a importância da via-sacra, uma réplica à imagem da de Jerusalém, mas será a primeira vez que irá encarnar o papel. O autarca, comercial de profissão, que nunca fez sequer parte de um grupo de teatro, participou anteriormente noutras encenações na mata, relacionadas com as guerras napoleónicas. Na altura foi tudo feito com "muito improviso", mas "as opiniões foram muito positivas". Isso, a par com a disponibilidade que demonstra em colaborar com a comunidade, levaram à proposta. "Se calhar, por encontrarem em mim qualidades para esse feito", admite. "Irei desempenhado este papel com base numa emoção grande, porque o momento assim o exige. É algo que respeito muito", diz, assumindo-se abertamente como católico.
Nem o peso da cruz, de madeira maciça, que "deverá ter acima dos 30 quilos" e terá de carregar por caminhos sinuosos, o dissuadiu. "Dentro do contexto que é o sacrifício, aceito e vou fazer esse sacrifício". "Será um papel feito com a maior das emoções, vou fazer o meu melhor", reforça.
Alijó
Um treinador de basquetebol que canta
Paulo Silva está prestes a fazer 29 anos. Ainda lhe faltam alguns para chegar à idade com que Cristo foi morto (crê-se que entre 33 e 37 anos), mas já o tem representado em várias vias-sacras, nomeadamente em tempo de Páscoa. A mais recente foi a Via Dolorosa, quarta-feira, em Alijó, que juntou cerca de 600 participantes ativos. Paulo Silva é natural de Vila Real e é treinador de basquetebol em Vila Pouca de Aguiar. Ao mesmo tempo tenta uma carreira musical com Marco Aurélio. O trabalho que tem tido para a melhoria da voz já foi importante para as vias-sacras em que participou. Nomeadamente a Via Dolorosa de Alijó, em que também cantou. "Fazer de Cristo é uma experiência diferente de tudo", explica Paulo Silva. Não só pela "responsabilidade incutida pelo facto de representar uma das pessoas mais conhecidas do Mundo", como também por "todos os olhos estarem colocados nele". Apesar disso, não o assusta, pois diz "gostar de desafios".
Os diálogos e as músicas não são propriamente os seus maiores desafios, pois "já está habituado". O "mais difícil" é fazer a gestão entre a emoção e o canto. O objetivo é transmitir "o máximo de emoção às pessoas, seja na parte da paz, como na do sofrimento". Paulo Silva admite que emagreceu para "tentar ter um corpo o mais próximo possível do que se conhece de Cristo". Assume que o fez "mais pelas pessoas", "habituadas a ter a imagem de um Cristo magro e com feridas". A barba é natural, embora pouco farta, e teve de usar peruca.
Porto de Mós
A crença do aluno de informática
Quando, em 2018, o Município e a paróquia de Porto de Mós tomaram a iniciativa de fazer renascer uma antiga tradição de celebrações pascais na vila, Luís Adão foi "surpreendido" com o convite do padre para fazer de Jesus na recriação da via-sacra. "Disse-me que eu daria um bom Cristo", recorda, entre risos.
Luís Adão frequentava, então, o 10.º ano da catequese, mas, admite, não era nem é das pessoas mais assíduas na missa. "Gosto de acreditar que existe alguém superior a tomar conta de nós e que há algo depois da morte", assume o jovem, de 20 anos, estudante de Engenharia Informática.
A surpresa inicial deu lugar ao entusiasmo com que, ano a após ano, encabeça o cortejo da via-sacra, desde a igreja de São Pedro até ao morro do Castelo, onde é encenada a crucificação. "É comovente. Instala-se o silêncio e emociona mesmo quem não acredita", confessa, apontando este como um dos momentos mais exigentes para si. "Quando a cruz está a subir, sente-se a ansiedade para que corra tudo bem e que não caía. Ao mesmo tempo, precisamos de manter a solenidade", salienta Luís Adão, que não corta o cabelo desde novembro.