Associações contestam critérios para pagamentos que penalizam vítimas de violência doméstica.
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Quase 80% das vítimas de violência doméstica que, no ano passado, viram o seu pedido de apoio mensal ser rejeitado pela Comissão de Proteção às Vítimas de Crime (CPVC) ficaram sem direito àquela prestação por, mesmo após a separação do agressor, auferirem mais do que o salário mínimo nacional, então fixado em 580 euros. O valor corresponde ao patamar a partir do qual o organismo considera, à luz da lei, que os requerentes não se encontram numa situação de "grave carência económica" - uma condição indispensável para receberem esta indemnização.
A opção, em vigor desde 2011, é criticada pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) - que falam numa situação "prejudicial" para a pessoa agredida -, mas para Carlos Anjos, presidente da CPVC, trata-se de um critério "objetivo" para atribuir um apoio que se restringe ao momento de rotura do casal e que não surgiu, em 1999, com o propósito de ser universal. O dirigente reconhece, ainda assim, que o montante é baixo, tal como é, no seu entender, o salário mínimo nacional.
Os dados constam do mais recente relatório da CPVC, tutelada pelo Ministério da Justiça: dos 142 processos por violência concluídos no ano passado por aquele organismo, 55 terminaram sem a atribuição de uma indemnização à vítima, em 43 dos quais por esta não se encontrar, na sequência do crime, numa situação de "grave carência económica".
A exigência está prevista na lei que regula a concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, sem que seja definido, em concreto, o que tal significa, abrindo a porta a interpretações diversas.
Mais fatores a ter em conta
"Estamos claramente perante um conceito indeterminado", lamenta Inês Gonçalves, jurista da APAV, para quem faz sentido associar a atribuição do apoio em causa à condição económica da pessoa lesada, mas não nos termos definidos pela CPVC.
"É errado e prejudicial para as próprias vítimas que não se tenha em conta outros fatores: as despesas da própria vítima, os filhos menores a cargo, a existência de filhos portadores de deficiência. A vítima aufere mais do que o salário mínimo nacional e todos estes fatores não são aqui tidos em conta", sublinha a especialista ao JN.
"Vítima perde sempre"
"A vítima perde sempre", acrescenta Elisabete Brasil, diretora-executiva da UMAR, lembrando que, muitas vezes, é a pessoa agredida que tem de sair de casa "porque o sistema não age".
"Há um apelo do próprio Estado à denúncia, mas quando a vítima toma a decisão de responder positivamente a todos os apelos e de perceber que, quanto mais tempo fica, piora a situação e sai, ela merecia do Estado toda a tutela possível", frisa a responsável. Elisabete Brasil defende, por isso, que o cálculo do apoio a atribuir tenha "por base uma indemnização, ainda que mínima, e depois todas as perdas efetivas" da pessoa agredida.
Carlos Anjos reconhece que, como em qualquer separação, há sempre uma perda de rendimento, mas considera que atribuir um apoio universal ou consoante as despesas poderia criar situações de "injustiça", com pessoas com mais rendimentos e mais despesas a receberem um apoio enquanto outras, com um salário mais baixo mas menos encargos, a ficarem excluídas.
"Se o Estado tem um salário mínimo nacional, todas as pessoas que estão abaixo do salário mínimo nacional estão numa situação de carência", sustenta o presidente da CPVC, especificando que, no ano passado, os casos rejeitados são sobretudo de pessoas que mantiveram a sua casa e o seu emprego, bem pago para o panorama nacional.
"Tiveram um decréscimo no nível de vida? Tiveram. Mas ficaram numa grave situação de carência económica? Não", remata.
Valor das prestações atribuídas é inferior ao máximo permitido
Muitas das vítimas que, no ano passado, beneficiaram do apoio mensal atribuído pela Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes (CPVC) já usufruíam de outras prestações sociais, como o subsídio de desemprego, o rendimento social de inserção e o contrato de segurança social CEI+. Outras auferiam de um salário inferior ao salário mínimo nacional, então fixado em 580 euros.
Em todos estes casos, receberam da CPVC apenas o montante necessário para ficarem com um rendimento mensal correspondente ao montante mínimo que qualquer trabalhador deve auferir.
O panorama explica o porquê de a indemnização atribuída entregue mensalmente por aquele organismo ser, em média, inferior ao patamar que assinala a existência de uma situação de "grave carência económica". Nos últimos cinco anos, foi em 2014 - quando o salário mínimo nacional era de 485 euros - que as prestações atribuídas mais se aproximaram do teto máximo. Depois de três anos em queda, o montante do apoio concedido a cada vítima voltou a subir, cifrando-se, em média, nos 233,37 euros mensais (ver infografia).
"A falta de condições económicas é, ela própria, causa de violência doméstica", salienta o presidente da CPVC, Carlos Anjos. As características dos pedidos recusados mostram, porém, que não será exclusivo de populações socialmente mais vulneráveis.
A prová-lo, exemplifica o responsável, o facto de, em 2017, ter sido rejeitado o requerimento de uma vítima de classe alta que, à data, residia numa habitação em Lisboa arrendada por 3500 euros mensais.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Quem pode recorrer ao apoio mensal atribuído pela Comissão de Proteção às Vítimas de Crime (CPVC)?
Qualquer vítima, independentemente da nacionalidade, de um crime de violência doméstica ocorrido em Portugal, e que, na sua sequência, fique em situação de "grave carência económica". O presidente da CPVC reconhece ao JN, no entanto, que o organismo tem optado, na maioria das vezes, por atribuir o apoio quando esta condição é anterior ao crime. "Se fôssemos por aí, negávamos muito mais apoios", justifica Carlos Anjos.
O que é uma situação de "grave carência económica"?
O conceito não está definido na lei que regula este benefício, mas, de acordo com a CPVC, o legislador "plasmou de forma clara", na sua versão original, "que nenhuma vítima" poderia "beneficiar de um apoio superior ao valor da retribuição mínima garantida", que, hoje, corresponderia ao rendimento social de inserção. Como este é composto por vários escalões, tornando difícil a definição de um valor de referência, a CPVC optou em 2011 por usar como patamar o salário mínimo nacional, atualmente fixado em 600 euros.
Em que momento e por quanto tempo é atribuído este apoio?
No momento da rotura familiar, em que se efetiva a separação do agressor ou agressora, de modo a garantir que a vítima consegue sair da relação abusiva em que se encontra. "Este apoio pode ser concedido por um período de seis meses, podendo ser prorrogado em situações excecionais por mais seis meses", explica a CPVC. No entender do legislador, a vítima necessitará, por isso, de um ano, "para reorganizar a sua vida e encontrar um novo projeto de vida".
A CPVC atribui sempre um apoio correspondente ao salário mínimo nacional?
Não. A prestação atribuída mensalmente é apenas a suficiente para que a vítima tenha, no total, um rendimento correspondente ao salário mínimo nacional em vigor. Este apoio é, assim, acumulável com outras prestações sociais.
É este o único adiantamento de indemnização existente para vítimas de violência doméstica?
Não. No final do processo-crime, se o agressor for condenado e não tiver possibilidade de compensar a vítima financeiramente, esta pode solicitar à CPVC um adiantamento da indemnização, por ter sido alvo de um crime violento. Neste caso, não se aplica a exigência de "grave carência económica" requerida no regime de apoio anterior. O montante é pago através de uma só transferência.
Onde é possível obter mais informação?
Através do site da CPVC, alojado em http://cpvc.mj.pt. É ainda possível contactar o organismo através do número de telefone 21 322 24 90 e do e-mail correio.cpvc@sg.mj.pt. A sede fica na Avenida Fontes Pereira de Melo, n.º 7, em Lisboa.