Atrasos na entrega de próteses geram revolta e há quem quase não saia de casa desde janeiro. "Antes mobilizavam-nos, agora descartam-nos".
Corpo do artigo
"Se não fosse a minha mulher, eu já tinha morrido." Augusto Matos, antigo combatente hoje com 74 anos, perdeu as duas pernas na Guiné. Há dois meses à espera de duas próteses, quase não sai à rua e já caiu duas vezes em casa por ainda estar a usar as antigas. Queixa-se de que o Estado está a demorar mais tempo do que dantes a fazer a entrega. Sente-se "abandonado" e receia ainda ter de aguardar "muito mais". Carlos Fanado, que também combateu na Guiné e tem 94% de incapacidade motora, não anda desde janeiro. Precisa de apoios para as duas pernas e diz que não os recebe porque, ultimamente, a "burocracia" tem subido em flecha. Mas não se conforma: "A prótese é a minha perna. Preciso dela para fazer a minha vida e ter dignidade", afirma ao JN.
Augusto Matos reside em Barcelos e vive desde 1971 sem as duas pernas. Até há três anos, a entrega das próteses nunca tinha sofrido atrasos de maior. Mas tudo piorou por volta de 2019. O ex-militar desabafa: "Quando precisavam de um gajo, mobilizavam-nos [para a guerra] e, se não fôssemos, tínhamos a GNR à porta. Agora descartam-nos".
Ao receitar as novas próteses, a médica do Hospital Militar do Porto avisou Augusto Matos de que se seguiria uma fase de concurso. "Então como é que vou andar?", perguntou o paciente. A médica respondeu que não havia outra hipótese a não ser esperar. "Para pouparem 100 ou 200 euros, estou quatro ou cinco meses sem ter para onde ir", queixa-se Augusto.
"o país não tem respeito"
Carlos Fanado, de Cascais, anseia pelo dia em que voltará a caminhar pelos próprios meios. "Não ando desde 5 de janeiro de 2022", lamenta. Entretanto, passaram-se quase nove meses e este antigo militar, de 71 anos - perdeu as pernas um mês antes do 25 de Abril - continua sem ver qualquer luz ao fundo do túnel. "Desde janeiro que não sei nada. Ando de muletas e quase não saio de casa."
Carlos usa prótese numa das pernas e uma bota especial feita na Alemanha, com um encaixe a que chama "copo", na outra. Em 2021 foi-lhe diagnosticada uma doença que o fez perder oito quilos num mês, tornando impossível calçar o "copo". Foi observado no Hospital Militar de Lisboa, mas continua sem ver o seu caso resolvido.
"É inexplicável como Portugal não tem respeito por alguém que perdeu as pernas ao serviço da pátria", queixa-se Carlos Fanado. Dizendo sentir "muita tristeza e uma grande revolta" devido à situação que vive, atira: "Adoro o meu país, mas nunca pensei que um dia me tratariam desta forma".
José Dias, 75 anos, de Lisboa, perdeu a perna direita ao pisar uma mina em Moçambique, em 1972. Em fevereiro passado, a prótese que usava começou a fazer ferida. Dirigiu-se ao Hospital Militar, onde o médico lhe prescreveu um encaixe novo. "Estou à espera até hoje", relata. "Antes, por vezes não demorava sequer um mês."
José Dias tem carro e continua a conduzir. Mantém a prótese antiga enquanto não recebe uma nova, mas caminha pouco com ela "para não magoar muito". O que traz outro problema: com a falta de prática, "o físico ressente-se".
há 28 casos só em lisboa
Os três ex-combatentes não escondem a insatisfação. "Gasta-se dinheiro em tudo e mais alguma coisa, mas, para nós, não há nada", critica José Dias. Augusto Matos realça as dificuldades de fazer os 120 quilómetros de ida e volta entre Barcelos e o Porto de cada vez que vai a uma consulta. "E, se não aparecer no dia marcado, tenho de estar mais seis ou oito meses à espera", afirma. A revolta de Carlos Fanado estende-se aos militares de hoje, que descreve como "arrogantes". Muitos deles "nem sabem que houve guerra colonial", comenta. A sua insatisfação, reconhece, é alimentada pelo facto de continuar sem as próteses novas e sem respostas: "Não sei a quem me dirigir. Ninguém sabe de nada".
Ao JN, o diretor da Associação de Deficientes das Forças Armadas, coronel Santa Clara Gomes, revela que há "algumas dezenas" de casos destes no país. Francisco Janeiro, que lidera a delegação de Lisboa, diz que só na capital são 28. A associação tem estado em reuniões com o laboratório militar.
Para Santa Clara Gomes, os atrasos começaram quando o apoio deixou de ser prestado pelos ramos das Forças Armadas e passou para o Ministério da Defesa. "A ligação deixou de ser tão direta", refere. Pede que a ajuda chegue pela via logística e não através da Assistência na Doença aos Militares.