Especialistas ouvidos pelo JN pedem debate na Concertação Social e consenso alargado na revisão da fórmula de atualização de reformas, que muda em 2024.
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A antecipação, já em outubro, de uma parte dos aumentos das pensões de 2023 desenterrou o debate sobre a sustentabilidade da Segurança Social. O Governo quer mudar a lei da atualização das pensões e entregou, em julho, a tarefa a uma comissão que só vai reunir-se pela primeira vez na próxima semana. Especialistas, ouvidos pelo JN, pedem consenso alargado.
Os ministros de Costa têm proclamado o enterro da fórmula nos últimos dias, apesar de não haver decisões do grupo de trabalho. Ana Mendes Godinho, titular da pasta da Segurança Social, sublinhou que o atual instrumento de atualização das pensões retiraria 13 anos de sustentabilidade à Segurança Social. Fernando Medina, que lidera as Finanças, veio defender que a fórmula foi desenhada para contextos de inflação e de crescimento baixos. A mudança da lei "é uma reflexão para se fazer", atirando para o próximo ano o resultado dessa discussão.
O cálculo das pensões para 2024 será baseado no trabalho da Comissão para a Sustentabilidade da Segurança Social. Este organismo é composto por oito especialistas cuja primeira reunião é só esta semana.
uma fórmula polémica
A fórmula atual está inscrita na lei 53-B/2006, de 29 de dezembro, e prevê a atualização das pensões com base em dois fatores: a inflação do ano anterior ao que está a ser atualizado e o crescimento do produto interno bruto (PIB) dos dois anos anteriores. As reformas mais altas crescem na medida da inflação; as intermédias são atualizadas pela inflação, mais 12,5% do crescimento do PIB; e as mais baixas crescem ao ritmo da inflação, mais 20% do PIB.
O Governo fala verdade quando argumenta que a subida de 4,43% para 2023 é histórica, mas, pela lei, seriam 8%. Em parte, a "culpa" do aumento é da inflação, mas também da pandemia. É que o PIB regrediu 7,6% em 2020 e o efeito corretivo deu-se em 2021 e em 2022, anos de crescimento acentuado. Como são estes dois últimos anos que contam para a atualização de 2023, as pensões teriam de subir muito. As pensões também teriam de regredir em 2020, o que não sucedeu.
Desde que foi criada, a fórmula foi mais vezes ignorada do que cumprida. Pedro Mota Soares, ministro da Segurança Social de Passos Coelho, recorda que, "logo em 2010, com o Governo de José Sócrates, a atualização das pensões foi suspensa por causa das dificuldades financeiras do país". Depois, essa suspensão "foi inscrita no memorando de entendimento da troika".
Consenso necessário
A atualização esteve congelada até António Costa a recuperar em 2016. Só que até 2020 a inflação e o crescimento foram baixos, o que daria aumentos residuais. Criaram-se aí os aumentos "extra" de dez euros (que acabam em 2023) que também desvirtuaram a fórmula, mas, desta vez, a favor dos pensionistas.
"Esta lei nunca foi aplicada", sintetiza Pedro Mota Soares, que até concorda com ela: "Este princípio faz sentido e tira os aumentos de pensões do ciclo político". Ou seja, cria regras que impedem o uso das atualizações como arma de campanha. "Espero que isto não signifique um congelamento de pensões e, em ano eleitoral, voltamos a ter um descongelamento".O ex-ministro entende que, ao contrário do que aconteceu com o pacote anti-inflação, os parceiros devem ser ouvidos: "Não tenho nota de os parceiros sociais terem sido incluídos, ou pelo menos ouvidos, nessa solução. Podia ser mais concertada ".
Fernando Ribeiro Mendes, que foi secretário de Estado da Segurança Social de António Guterres, concorda que "qualquer que seja a solução devia ter um consenso alargado e generalizado". O ex-governante afirma que a reforma de 2006 teve "vistas curtas" e que o regime depende deste consenso. "O regime não sobrevive se não tiver um consenso muito alargado sobre as pensões. A questão é muito sensível, porque hoje temos três milhões de pensionistas e ainda vamos ter mais".
O professor do ISCTE e especialista em políticas sociais Luís Capucha constata que "a média das pessoas que se reformam agora é mais elevada do que era há uns anos" e, por isso, faz sentido abordar o problema. Mas pede transparência: "O que vemos é uma discussão política marcada por uma forma muito nebulosa e por discursos mais ideológicos do que técnicos".
Posição
Vieira da Silva diz que modelo está desatualizado
A fórmula de cálculo de atualização das pensões foi criada em 2006 pelo então ministro da Segurança Social, Vieira da Silva, no Governo de José Sócrates. Hoje, o ex-ministro entende que a fórmula está desatualizada, pois "foi desenhada numa altura em que a inflação era inferior a 2% e tinha sido inferior a 2% nos 15 anos anteriores". Ou seja, "não foi pensada para uma situação tão extraordinária e complexa como aquela que estamos a viver", acrescentou, apelidando de "tremor de terra" esta crise "global". Por isso, diz que não tem "fetichismo" pela regra: "Se ela tiver de ser alterada e for para melhor, muito bem".
Percurso da fórmula de atualização das reformas
29 dezembro 2006
Fórmula criada e suspensa em 2011
A fórmula foi criada pela lei 53-B de 2006, publicada no Governo de José Sócrates. A 17 de maio de 2011, o memorando de entendimento, assinado com a troika, determina a suspensão da regra de atualização de pensões, exceto para as mais baixas. Já em 2010, no OE 2011, o Governo tinha suspendido a atualização.
1 novembro 2015
Acordo à esquerda descongela
Catarina Martins, líder do BE, anuncia um acordo com o PS, liderado por António Costa, para descongelar as pensões e aplicar a fórmula de atualização de 2006. Contudo, devido ao reduzido crescimento do PIB e à baixa inflação (em alguns anos negativa), os aumentos foram sempre tímidos até 2021.
5 setembro 2022
Medidas contra a inflação
O primeiro-ministro António Costa anuncia o pagamento de meia pensão para outubro. Esse adiamento implica um corte no aumento da reforma de 2023, que, em vez de subir 8%, só sobe 4,43%. Até 2023 ninguém perde, mas a base para os aumentos de 2024 é reduzida. Decisão alvo de duras críticas.
6 setembro 2022
Inflação alta condena fórmula
O ministro Fernando Medina admite que o método de atualização das pensões é para mudar em 2024, pois "a fórmula não foi feita para períodos de inflação tão alta". Dois dias depois, Ana Mendes Godinho diz que aplicar a fórmula em 2023 reduziria em 13 anos a sustentabilidade da Segurança Social.
Março e junho 2023
Termina o prazo para a comissão
O Governo criou um grupo de trabalho, a Comissão para a Sustentabilidade da Segurança Social, que delineará um novo modelo de atualização das pensões, entre outras matérias. Terá de apresentar o relatório final até 30 de junho de 2023, sem prejuízo de fazer um relatório preliminar até 31 de março.
Perguntas e Respostas
O que diz a fórmula de 2006?
Define que o aumento da pensão para um determinado ano é igual à inflação acumulada, sem habitação, do ano anterior, ao qual se pode somar parte do crescimento do PIB dos últimos dois anos.
Qual o indicador que mais pesa na regra?
É a inflação. Nas pensões mais altas, o aumento é igual à inflação; nas intermédias, é a inflação mais 12,5% do crescimento do PIB nos dois últimos anos; e nas mais baixas, é a inflação, mais 20% do crescimento do PIB.
De quanto é o aumento em 2023?
O aumento é de 4,43% para as pensões até 886 euros, de 4,07% para as intermédias (entre 886 euros e 2659 euros) e 3,53% para as mais altas. Pela fórmula, seria de 8%, 7,65% e 7,1%. Uma pensão de 500 euros subirá para 522,15 euros em 2023, mas, pela lei, deveria aumentar para 540 euros.