Prazo para indemnizar vítimas de abusos vai além dos 15 anos dados pela justiça criminal. Via extrajudicial pode compensar maior número de lesados, mas exige acordo da Igreja. Comissão que recebeu denúncias propõe outra para determinar indemnizações.
Corpo do artigo
Algumas das vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja Católica podem reclamar indemnizações nos tribunais cíveis, mesmo que os crimes correspondentes já tenham prescrito.
Em causa está o facto de, na instância civil, a ofensa prescrever ao fim de 20 anos e não de, no máximo, 15 anos, como na jurisdição penal, na qual a obrigação de reparação está sempre dependente de uma condenação do agressor por abuso sexual de menores ou ato sexual com adolescente, explica, ao JN, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (MP).
A via judicial não é, ainda assim, nem a única possível nem a mais abrangente para que as vítimas sejam compensadas financeiramente pelos danos sofridos na infância. A alternativa poderá passar, tal como tem acontecido noutros países com abusos sexuais em massa em instituições católicas, pela criação de uma comissão com esse propósito, sem intervenção dos tribunais na definição do valor a pagar.
Das 512 denúncias recebidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, só 25 foram remetidas ao MP, por não terem prescrito. Caso estes processos-crime culminem em condenação, o montante da indemnização será determinado pelos juízes segundo os critérios legais.
"Não há uma tabela"
Na prática, os magistrados terão em conta, sobretudo, dois fatores: os custos médicos com as ofensas corporais sofridas e os danos "psicológicos" causados pelos atos, "mais difíceis de calcular".
"Não há uma tabela, mas a jurisprudência dos tribunais da Relação e do Supremo vai fixando, ao longo do tempo, mais ou menos uma bitola daquilo que é valor para esse dano psicológico", explica Adão Carvalho. A "capacidade económica" do agressor e a gravidade dos atos - se se tratou de uma carícia ou de uma penetração, por exemplo - são outros fatores ponderados na definição do montante indemnizatório.
Os critérios são os mesmos se a questão for discutida nos tribunais cíveis, por "violação dos direitos de personalidade". "Não se vai discutir se cometeu ou se não cometeu o crime. Vai-se discutir se houve uma lesão daquele bem pessoal e é fixada uma indemnização civil", acrescenta o procurador, salientando que, neste caso, além do agressor, também a "hierarquia", um "seminário" ou a própria "instituição" podem ser considerados responsáveis pelas ofensas.
Certo é que, mesmo com o prazo alargado de 20 anos face à jurisprudência penal, há potencialmente milhares de vítimas sem possibilidade de reparação nos tribunais. A estimativa da Comissão, feita com base nos testemunhos que recebeu e que reputou como credíveis, é a de que 4815 crianças tenham sido abusadas, no seio da Igreja Católica portuguesa, nos últimos 72 anos (a maioria dos casos apontados é anterior ao ano 2000).
Igreja Alemã paga milhões
No relatório apresentado na última segunda-feira, os seus autores propõem que seja criada "outra comissão dentro da Igreja", constituída "maioritariamente por membros exteriores", para receber queixas e propor indemnizações.
O método seria semelhante ao adotado na Alemanha, onde uma segunda comissão com 11 membros, criada em 2021 e independente da Conferência Episcopal Alemã, tem estado a ordenar o pagamento de indemnizações.
Até este mês, a Igreja Católica alemã desembolsou já cerca de 40 milhões de euros. Cada uma das 1809 vítimas que sinalizaram a intenção de ser compensadas receberam, em média, 22 mil euros. Nalguns casos, a quantia rondou os 100 mil euros; noutros, os 15 mil.
França, Canadá, Austrália, Estados Unidos da América e, em parte, Irlanda são os outros países onde a Igreja assumiu, sobretudo fora da esfera judicial, os pagamentos.
Os valores dificilmente serão superiores em Portugal, se os casos forem resolvidos nos tribunais e não extrajudicialmente.
Casos com indemnização
Casa Pia - Mais de dois milhões de euros para 44 vítimas
Em 2010, seis arguidos foram condenados a pena de prisão e a pagar entre 15 mil e 25 mil a vítimas de abusos sexuais a alunos da Casa Pia. O julgamento chegou ao fim oito anos após a primeira denúncia. Em 2006, o Estado já tinha sido obrigado por um tribunal arbitral a compensar em mais de dois milhões de euros um total de 44 vítimas.
Vila Real - Mensagens sexuais custaram seis mil a padre
Um padre de Vila Real foi condenado, em 2016, a uma pena de prisão de 20 meses, cuja execução foi suspensa, e ao pagamento de três mil euros a cada uma das duas raparigas, de 10 e 12 anos, com quem tinha trocado mensagens sexuais explícitas.
Seminário do Fundão - Vice-reitor abusou de cinco, mas só pagou a dois
Luís Miguel Mendes, padre que era vice-reitor do Seminário do Fundão, foi condenado a dez anos de prisão, em 2013, por ter abusado sexualmente de seis rapazes, com idades entre 11 e 15 anos. Cinco deles eram seminaristas. O padre foi condenado ainda a pagar dois mil euros a um menor e mil a outro. Os restantes não terão exigido indemnização.