Tributação de mais-valias trava migração de alojamento local para arrendamento, denuncia associação do setor.
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Com o turismo estagnado devido à pandemia de covid-19, há proprietários de unidades de alojamento local a tentar virar-se para o arrendamento habitacional, que escasseia nos grandes centros urbanos como Porto e Lisboa, mas muitos acabam por desistir quando são confrontados com a obrigação de pagar um imposto de mais-valias, denuncia a Associação de Alojamento Local em Portugal (ALEP).
"Não se consegue sair da atividade. Os proprietários que querem desistir estão presos ao alojamento local por uma falsa mais-valia, que é ter de pagar um imposto como se tivesse vendido a casa, mas sem ter vendido. Isto é impensável", condena o presidente da ALEP, Eduardo Miranda, sublinhando que a alteração introduzida pelo Orçamento do Estado (OE) para 2020 "não resolve nada" e "está a bloquear tudo".
"Zero impacto"
Segundo a lei do OE 2020, "não é considerada mais-valia a transferência para o património particular do empresário de bem imóvel habitacional que seja imediatamente afeto à obtenção de rendimentos de categoria F [rendimentos prediais]", sendo que, nesse caso, "não há lugar à tributação de qualquer ganho, se em resultado dessa afetação o imóvel gerar rendimentos [de categoria F] durante cinco anos consecutivos".
De acordo com o Governo, a medida, que está entre os "desafios estratégicos" do Orçamento do Estado, pretende "incentivar a transferência do alojamento local para o mercado de arrendamento, designadamente no segmento do arrendamento acessível". Mas a associação que representa os empresários do setor garante que o incentivo "teve zero de impacto".
Eduardo Miranda afirma que "não atraiu ninguém para o arrendamento, porque há muitos "ses"". "Imagine-se que, a meio do caminho, o arrendatário sai, ou o proprietário precisa da casa para si. Já não são cinco anos consecutivos", concretiza o líder da ALEP, lembrando que "há gente que quer arrendar por dois, três ou quatro anos, que quer arrendar a estudantes e professores ou que quer usar a casa. Todos estes foram esquecidos, e estão quase impedidos de abandonar o alojamento local, ou têm de pagar um valor absurdo".
Rendas acessíveis
"Vamos ver alojamentos locais vazios ou com pouca ocupação, ou vamos ver tentativas de curto prazo", que não implicam cancelar o registo de AL, vaticina o responsável. Porém, contrapõe: "Se quiser arrendar a estudantes, até o posso fazer no âmbito do alojamento local, mas um estudante ou um professor precisa de um contrato de arrendamento para abater as despesas no IRS".
Entretanto, as autarquias do Porto e de Lisboa estão a promover, a par de outros municípios, programas de rendas acessíveis, através do arrendamento aos proprietários - incluindo de AL -, mas ambas exigem que os contratos sejam, no mínimo, de cinco anos.
No caso do "Porto com Sentido", poderá ser de três, mas aí o proprietário perde o direito aos benefícios fiscais, que são uma das vantagens garantidas pelas duas câmaras, que indicam que as mais-valias obedecem ao "regime legal" em vigor.
Alojamento local em Lisboa reduz preços para sobreviver
Há um ano, Diogo Félix esperava que 2020 fosse "o melhor ano de sempre" para o alojamento local. A chegada da pandemia covid-19 mudou tudo. "Tinha reservas até setembro e começaram a cair cancelamentos na ordem dos 80%", conta à porta do seu AL no coração de Alfama, em Santa Maria Maior, uma das freguesias de Lisboa que mais sentiram o crescimento das unidades turísticas, nos últimos anos.
Quando as fronteiras fecharam, por causa da covid-19, tinha um casal norte-americano hospedado. Foram os únicos hóspedes durante os três primeiros meses de pandemia. "Ficaram retidos em Portugal. Fiz-lhes um preço simbólico, de 12 euros", conta.
Nem todos tiveram, porém, "a mesma sorte dentro do azar". "Tenho quebras enormes, mas há pessoas que não faturaram nada e fecharam. E quem contraiu um empréstimo para comprar apartamento vai encerrar", assegura.
Alfama é um dos bairros de Lisboa onde não se pode abrir mais unidades turísticas - segundo o Regime de Autorização de Estabelecimentos de Alojamento Local -, o que levou muitos a resistirem. "Se fecharem depois, não podem voltar a abrir", explica Diogo, que vive exclusivamente desta atividade. Para não encerrar, baixou os preços "para metade" e voltou a receber reservas no início de julho.
Cristina Horta, também proprietária de AL, depois de quatro meses sem hóspedes, fez o mesmo e prolongou a estadia para um mês, mas não é suficiente. "Quem vive do AL não tem uma vida de luxo, tem muitas contas para pagar. Os meus hóspedes, que voltaram agora, estão a cobrir-me as despesas, não me estão a dar lucro", lamenta. Quem a procura "já não é o típico turista". "Recebi pessoas que vêm trabalhar para Lisboa", exemplifica. A falta de visitantes também se sentiu na restauração.
O Tasco do Vigário, em Alfama há 33 anos, por esta altura já deveria ter a esplanada cheia, mas nem sinal de turistas. Sobrevive graças ao takeaway. "Não está fraco, está morto", diz Ricardo Antunes, funcionário.
Bruno Romão, dono da pastelaria Alfacinha, manteve sempre o "formato tradicional", decisão que estará a ajudá-lo agora, que só recebe moradores. "Quem reestruturou o negócio só para o turismo vai ter mais dificuldades", acredita.
"Está muito triste, a minha Ribeira... Só se veem hostéis"
A meio de uma tarde tórrida de julho, é um grupo de miúdos que anima uma Ribeira do Porto de esplanadas vagas e tímido corrupio turístico. Rapazes e raparigas mergulham nas águas do Douro vezes sem conta. Emergem a rir, dourados pelo sol.
Os olhos de mar de Bela Palavrinhas vigiam os catraios - afinal, ela já foi como eles, e sabe bem o que é viver com o rio entranhado na pele. É uma alma que jura que só morta é que sai da Ribeira, onde foi "nascida e criada". Figura icónica local, Bela - que também é Bela Russa, embora prefira a primeira alcunha, que lhe dá a fama - é possessiva: "Está muito triste, a minha Ribeira. Só se vê hostéis e restaurantes. E, agora, sem turismo, não é nada. Está morta, a minha Ribeira".
Tem uma esplanada por conta dela e dos garotos, que se abeiram encharcados até aos ossos. Bela olha em volta e lamenta: "Já não bastava tirarem o nosso povo da Ribeira. O turismo veio estragar isto; centenas de pessoas saíram. Agora, está completamente vazia. Durante a semana, pior ainda. Só há uns fins de semana é que têm vindo estrangeiros, mas a gente até tem medo, por causa da pandemia. É uma coisa inédita".
"Não há volta a dar"
No Clube Desportivo e Cultural dos Guindais, Maria Figueiras lastimava o mesmo: "Nota-se muito a quebra de turistas. E moradores, agora, nada. Foi quase tudo embora". A meio das Escadas dos Guindais, Rui Barros, que lidera o mítico Guindalense, nota, em contrapartida, "um acréscimo de portugueses, de pessoas de Gaia, Matosinhos, Rio Tinto", no bar da associação. O sobe e desce de turistas é que "não tem nada a ver" com o movimento que havia antes da pandemia.
Sentencia, contudo: "O Porto depende do turismo, e não há volta a dar. O grande mal foi a malta nova começar a sair quando se deu a construção [nos arredores do Porto]. Era rico comprar um apartamento fora daqui, porque morar na Sé era pobre. Chique era comprar apartamento em Gaia, por exemplo. Hoje, dão couro e cabelo para virem para aqui".