A pandemia fechou o comércio, obrigou a indústria a reconverter-se, isolou idosos e provocou mortes na primeira região a enfrentar a covid-19.
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Aninhado junto à berma da EN207, em Nogueira, um casal de cerca de 70 anos entretém-se a retirar ervas do canteiro. A tarde está soalheira, mas numa aldeia com ruas vazias de gente e carros, ela e ele reagem com desconfiança à abordagem de três estranhos. Preferem não se identificar, mas sentem à-vontade suficiente para contar que, a 15 de março do ano passado, fecharam as portas do Café Flor do Monte e, desde então, nunca mais serviram os clientes que, há mais de 30 anos, eram como família. E não mais servirão, porque a decisão de acabar com o negócio é definitiva.
Desde que o vírus chegou a esta terra de Lousada, o casal passa os dias na residência, num esforço para esticar os 400 euros de uma reforma que tem de pagar todas as despesas. Um modo de vida espartano que é exemplo do que se passa com muitas famílias do município, o primeiro a ser atacado por um vírus que obrigou a um confinamento com consequências devastadoras, sobretudo, no tecido comercial e na saúde mental dos seus habitantes. Já a indústria, especialmente a do setor têxtil, reconverteu-se para sobreviver com a produção de equipamentos de proteção individual. Só este golpe de asa impediu a subida exponencial do desemprego num concelho que, no final de outubro do ano passado, contava com 1751 desempregados. Mais 389 do que os registados em fevereiro, mas menos 103 do que os contabilizados em setembro.
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Economia
Sobreviver com 73 euros
"O impacto económico foi brutal". A frase é de Nélson Oliveira, vereador da Câmara de Lousada, que assume que as consequências, no entanto, "não foram tão más" como as esperadas. "Houve uma proatividade dos empresários e do município na questão dos equipamentos de proteção individual, que foram e são o suporte das empresas. Conseguimos readaptar o foco de negócio das nossas empresas", justifica. O autarca dá o exemplo da Univerplast, fábrica que, logo em março, trocou os cabides pela produção de 12 mil viseiras médicas por dia.
Menos sorte teve José Silva. "Fechei o meu estabelecimento no início da pandemia e agora fui obrigado a fechar outra vez. Experimentei o takeaway, mas não resultou. É um café familiar, aberto há 20 anos, sem apoios do Governo. Estou a sobreviver com algumas economias. Isto está um caos", avisa o dono do "Zé dos Bombeiros", vizinho de Casimiro Sousa, um dos primeiros portugueses infetados.
De Barrosas, Felgueiras, onde vivem muitos dos funcionários da Fego Fla, Eugénio Ferreira tinha "um bom ordenado" numa fábrica de calçado, quando, há dois anos, decidiu abrir um café. "Estive oito meses bem, mas agora é para fechar", prevê. "A pandemia começou aqui e, nessa altura, fechei o café três meses. Na segunda vaga voltei a fechar e, durante este tempo, recebi 73 euros do Governo. Tenho sobrevivido com dinheiro que tinha poupado, mas tenho dívidas a fornecedores", declara.
Morte
Tsunami que arrastou tudo e todos
Eugénio Ferreira tem "mais receio do que vai acontecer aos empregos do que da doença". "Não vi ninguém com menos de 40 anos a falecer. Quem morre são os velhos", defende. Joaquim Fernandes, da Agência Funerária Senra, e Elídio Mesquita, do Centro Funerário Angelfuner, sustentam tese semelhante. "O vírus não aumentou o serviço e fizemos apenas cinco ou seis funerais de defuntos infetados com covid-19", diz o primeiro. "Não houve mais funerais por causa disto", complementa o segundo.
Dados oficiais mostram que na área que agrega os municípios de Lousada, Felgueiras e Paços de Ferreira morreram 251 pessoas desde o início da pandemia, 119 só em novembro e outubro. "Ao contrário do restante país, que está a atravessar a situação mais complicada, nós tivemos muitos problemas durante a segunda vaga. Era incessante o número de casos que surgiam e tivemos de criar as equipas multidisciplinares de apoio para apoiar os centros de saúde. Era humanamente impossível que eles conseguissem contactar 500 pessoas por dia com os meios que tinham", recorda Nélson Oliveira.
"Aquele dia com 800 doentes no Serviço de Urgência foi um tsunami. Chegámos a ter 235 doentes internados, numa fase ainda incipiente da gestão partilhada de camas", recorda Filipa Carneiro, diretora clínica do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa (CHTS). Este hospital, que serve meio milhão de pessoas, incluindo a população de Lousada e Felgueiras, recebeu o primeiro doente com covid-19 em 13 de março e, no final desse mês, já tinha 40 pacientes internados em enfermaria e cinco em cuidados intensivos. Até novembro, os números subiram para 1385 internados em enfermaria e 97 em cuidados intensivos e, no final da semana passada, já tinham sido internados 2355 infetados, 188 dos quais com necessidade de cuidados intensivos.
"As primeiras semanas foram para gerir incertezas, os medos dos profissionais e para tentar reorganizar, captar os recursos disponíveis. Tivemos de criar espaços adequados, gerir o equipamento de proteção individual, dar formação aos profissionais para lidar com a patologia. Era tudo novo", descreve a médica. Filipa Carneiro deixa, ainda, uma certeza: "Os doentes sentiram medo".
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Saúde mental
Combater o estigma e o preconceito
Por estes dias, o CHTS prepara a "retoma cirúrgica para tratar com mais intensidade doentes não covid-19". Sinal de tempos mais serenos e que permitirão enfrentar outro tipo de problemas nascidos da pandemia. Como as doenças mentais. "Sou voluntária na assistência a um grupo de 29 idosos e alguns estão a perder a memória, outros deixaram de andar por não poderem sair de casa. Estou a perdê-los", alerta Conceição Dias. O vereador também tem "noção de que a população idosa é a que tem vindo a sofrer mais". "Ao protegermos estas pessoas do vírus, estamos a descompassar a balança daquilo que elas precisam em termos sociais. A paragem do Movimento Sénior, em termos psicológicos, tem sido terrível", admite.
Antero Correia, presidente dos Bombeiros Voluntários de Lousada, lança outro desafio, lembrando o anátema que envolveu todos quantos viviam na região com os primeiros casos de infeção. "Na fase mais aguda, sentimos um estigma sobre esta população. Os bombeiros chegaram a ser proibidos de participar em iniciativas só por serem de Lousada. Criou-se um certo constrangimento em relação às pessoas de Lousada e Felgueiras, que eram vistas como os maus da fita e os contaminadores disto tudo", refere.
Incerteza
Esperança para não desistir
Alberta Rodrigues, da Delegação da Sobreira da Cruz Vermelha Portuguesa (DSCVP), transportou Casimiro Sousa do hospital para casa. Repetiu a viagem de ambulância para Lousada e Felgueiras dezenas de vezes e assegura que os doentes dali sentiram o peso social da doença. "Diziam-nos que se sentiam massacrados", explica. Os mesmos doentes que demonstravam "receio" por "não saberem como lidar com a situação". "Tinham dúvidas sobre como se iriam alimentar e perguntavam como podiam viver na mesma casa sem contactar com as pessoas que lá estavam, como é que iam permanecer isolados".
Desde o início da pandemia, a DSCVP transportou 1384 doentes com covid-19 entre o hospital, quase sempre o São João, no Porto, e a sua residência. O primeiro ocorreu a 8 de março e contou com Regina Sousa, socorrista de 26 anos. "Apesar de saber que iríamos ser chamados a qualquer momento, foi uma situação inesperada. Não deu muito tempo para pensar, mas foi um momento emotivo", conta.
Ao longo do último ano, Alberta e Regina enfrentaram situações que as "chocaram" e outras que as "comoveram". "Tivemos casos de doentes, já com alguma idade, que foram aplaudidos a chegar a casa. E tivemos casos de familiares que não queriam receber os infetados", exemplificam. De Lousada, guardam a memória de "um povo cheio de esperança". A mesma esperança que as mantém firmes no cumprimento da missão. "Não podemos desistir para que ninguém desista", resume Regina.