A posição de Portugal no ranking europeu do número de magistrados por cem mil habitantes, longe do fundo da tabela, esconde, segundo fontes do setor, a escassez de juízes e procuradores em funções no país. Em causa estão as características únicas do Ministério Público (MP) nacional, a falta de assessores nos tribunais, comuns noutros estados-membros, e a distribuição desigual de juízes por área de trabalho.
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Em 2018, último ano com dados disponíveis para as duas magistraturas, havia, em Portugal, 19,3 juízes e 13,5 procuradores por 100 mil habitantes, um número superior a vários países do Sul da Europa.
O Conselho Superior da Magistratura e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) insistem na abertura de mais vagas no acesso à profissão, mas tal pode pôr em risco a qualidade de futuros juízes e procuradores (ler texto ao lado).
"É preciso perceber que o Ministério Público em Portugal tem mais funções do que em qualquer outro sistema", salienta, ao JN, o presidente SMMP, Adão Carvalho. Entre estas, estão, a par da direção da investigação de crimes, a representação nos tribunais administrativos e fiscais, cíveis, de família e menores e do trabalho. Tudo áreas que, noutros países, não estão a cargo de procuradores.
"Evidentemente que, se nós só estivéssemos centrados na parte do crime, como acontece, por exemplo, em Espanha, seríamos a mais", sustenta o dirigente sindical. Adão Carvalho lembra, ainda, que "não há magistrado nenhum na Europa que não tenha assessores a trabalhar nos vários tribunais". A sua contratação, já inscrita na lei, permitiria que a situação não fosse "tão complicada".
Assessoria fundamental
O presidente da União Internacional de Juízes, José Igreja Matos, concorda. "Os juízes de tribunais superiores normalmente têm assessores que os ajudam, que fazem recolha de jurisprudência, que fazem projetos de decisão. Em Portugal, não existem assessores nos tribunais da Relação", compara o também presidente da Relação do Porto. "Se os juízes são poucos ou muitos, depende um pouco da assessoria que têm", reitera.
O problema estende-se aos Tribunais Administrativos e Fiscais, que, de acordo com o respetivo Conselho Superior, "nunca estiveram dentro da média europeia". O mesmo órgão de gestão diz que, no final de 2020, havia 60 676 processos pendentes e 172 juízes em funções nesta jurisdição, verificando-se uma "carência objetiva" de 66 magistrados.
"É necessário apostar na formação de um corpo de juízes para esta justiça ultraespecializada, apoiado por adequada assessoria técnica e jurídica - assessoria que faria, até, diminuir a necessidade de aumentar anualmente o número de magistrados", conclui ao JN, por escrito, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Falta indicador objetivo
"Não estou nada seguro de que faltem quadros. Pode faltar gestão", defende, por sua vez, o líder da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Manuel Soares tem, "intuitivamente", a perceção de que os recursos "não estão a ser bem geridos", mas queixa-se da falta de um "indicador global do número de processos que cada juiz deve ter" por área de trabalho.
"Ninguém sabe qual é o número adequado de processos por juiz criminal, por juiz cível, por juiz de família e menores. Pode ser um com 400 e outro com 100", salienta o magistrado.
Mas o líder sindical alerta que existem tribunais pequenos que não podem ficar vazios: "Há locais no Interior que podem não ter um número suficiente de processos para um juiz, mas que têm de ter um juiz. Não se pode deixar um território importante sem Justiça", diz.
Comissões contribuem para falta de meios
O Conselho Superior da Magistratura (CSM) defende que as comissões de serviço dos juízes, "concretamente as não judiciais", "são de facto um problema" no funcionamento dos tribunais. Entre estas, estão dois magistrados a trabalhar no Ministério da Justiça. "Se o Conselho sentir que precisa de mais recursos, tem de autorizar menos. Não pode é autorizá-las e depois dizer que são muitas", reage, ao JN, o líder da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares. Segundo uma publicação do CSM, há atualmente 130 juízes em comissões de serviço judiciais e extrajudiciais, todas autorizadas pelo CSM. Já no Ministério Público, há pelo menos 35 magistrados num lugar externo, a maioria no Centro de Estudos Judiciários. Em novembro, o Conselho Superior do Ministério Público - que não respondeu ao JN - rejeitou, por exemplo, a renovação da comissão de serviço do atual diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Rómulo Mateus. A falta de meios terá sido um dos motivos para tal. Em janeiro, aceitou, ainda assim, prolongá-la por 90 dias.
Pormenores
Menos procuradores
Em 2020, havia, em todos as instâncias e jurisdições, 1576 magistrados (procuradores) do Ministério Público. Só na primeira instância dos tribunais penais são mais do que os juízes.
A meio da tabela
Um estudo da Comissão Europeia mostra que 20 dos 27 países da União tinham, em 2018, entre 10 e 30 juízes por 100 mil habitantes. Portugal tinha 19,3 magistrados.
Quase no topo
A maioria dos estados tinha entre dois e 15 procuradores por 100 mil habitantes. Portugal tinha 13,5 magistrados.