No primeiro mandato, presidente só pediu uma vez a fiscalização do Tribunal Constitucional. Só na questão da mudança de tutela da Europol/Interpol é que Tribunal não encontrou irregularidades.
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O presidente da República demorou três anos a enviar a primeira lei para o Tribunal Constitucional (TC) mas, quando o fez, tomou-lhe o gosto. O diploma que regula a gestação de substituição foi o único que fez Marcelo Rebelo de Sousa recorrer ao TC no primeiro mandato. No pós-reeleição, em 2021, Marcelo teve mais dúvidas: em sete meses, pediu veredictos sobre a eutanásia, a Carta dos Direitos Digitais e a lei do cibercrime. Este ano, fez o mesmo com as mudanças na cooperação policial internacional e pode repeti-lo com o novo diploma da eutanásia - que, assim, se tornará o sexto a merecer esse destino. Marcelo já admitiu vir a pedir a fiscalização das leis dos metadados, emergência sanitária e ordens profissionais.
Agosto de 2019 - Gestação de substituição
Foi o primeiro diploma que o presidente enviou para o TC. O cenário começou a desenhar-se em 2018, quando o tribunal - consultado por PSD e CDS - considerou que o projeto de lei que o Parlamento aprovara era inconstitucional, nomeadamente por não dar à gestante a hipótese de recusar entregar o bebé até ao momento do registo. De regresso ao Parlamento, o diploma seria novamente aprovado, em julho de 2019, sem que a correção fosse feita. Marcelo pediu a fiscalização preventiva a 26 de agosto e, três semanas depois, o TC voltou a chumba-lo, falando em "violação do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante" e no "direito de constituir família". Em 2021, PS, BE, PAN e IL aprovaram nova redação, que já permitia à gestante desistir de entregar a criança. Marcelo promulgaria o diploma em novembro desse ano, mais de dois anos após o início do processo. Foi, para já, o mais moroso.
Fevereiro de 2021 - Eutanásia, veto após reservas
Em fevereiro de 2020, os projetos de PS, BE, PAN, PEV e IL sobre a eutanásia foram aprovados na generalidade. Ficariam, depois, um ano a ser trabalhados, para se fundirem num só. O Parlamento aprovou-o em janeiro de 2021, com 136 votos a favor, 78 contra e quatro abstenções. A 18 de fevereiro, Marcelo solicitou a fiscalização, argumentando que o diploma recorria a "conceitos excessivamente indeterminados". Em março, o TC concordou, por sete juízes contra cinco, que o projeto era inconstitucional - sobretudo por não clarificar conceitos como "doença grave e incurável". Ainda assim, admitiu a eutanásia, desde que regulada de forma "clara". Vetada a lei por Marcelo, os deputados clarificaram alguns conceitos. O diploma seria de novo aprovado - agora com 138 votos -, mas o presidente usou o veto político no fim de 2021, alegando "contradições" entre os conceitos de doença "grave", "incurável" e "fatal". A versão final, aprovada no passado dia 9, deixou cair a exigência de "doença fatal" - alargando as hipóteses de morte assistida -, contrariando Marcelo. Deram-lhe o aval PS, IL, BE, PAN e Livre, com votos contra de PSD, Chega e PCP (alguns deputados de PS e PSD votaram de modo dissidente). O novo texto estará a caminho de Belém.
Julho de 2021 - Direitos Digitais, o famoso artigo 6.º
Foi o único pedido de fiscalização sucessiva até agora - ou seja, a única vez que Marcelo recorreu ao TC após a aprovação de uma lei. A Carta de Direitos da Era Digital, que regula o ciberespaço, resultou de projetos de PS e PAN, tendo sido também aprovada por PSD, BE e CDS, sem votos contra, em abril de 2021. Marcelo promulgou-a em maio, mas pediria fiscalização em julho, devido à polémica com o artigo 6.º: este visava proteger os cidadãos da "desinformação", conceito que o chefe de Estado entendeu ser "vago e indeterminado". Para o pedido ao TC contribuiu o alerta da IL - que, depois de se abster, lamentou não ter votado contra uma lei que promovia a "censura" -, além das objeções do Sindicato dos Jornalistas e de constitucionalistas. Entre os conceitos que geraram dúvidas contam-se o de "narrativa comprovadamente falsa ou enganadora", o de "ameaça aos processos políticos democráticos" e o de conteúdos "manipulados ou fabricados". Antes de o TC se pronunciar, o Parlamento revogou o artigo polémico, o que levou Marcelo a promulgar as alterações a 3 de agosto de 2022. Fora da nova versão ficou igualmente a previsão de apoio estatal a verificadores de factos, que o presidente também contestava.
Agosto de 2021 - Lei do Cibercrime
Em julho de 2021, PS, PSD, BE e PAN aprovaram (sem votos contra) uma alteração à lei do cibercrime que permitia a apreensão de e-mails "sem prévia autorização da autoridade judiciária". A 4 de agosto, o presidente enviou o diploma para o TC, tendo as denúncias da Comissão Nacional de Proteção de Dados contribuído, em larga medida, para essa decisão: a Comissão alertava desde março que a apreensão de e-mails sem autorização de um juiz "desprotege excessivamente" os cidadãos , contribuindo para a "degradação" da privacidade. No requerimento, Marcelo sublinhou que a alteração em causa não era um mero "ajustamento", mas, sim, uma "mudança substancial" que "parece divergir" do Código do Processo Penal. O presidente alegou também que o Ministério Público não possui "independência" para avaliar a necessidade de acesso a e-mails, por se tratar da entidade que investiga os crimes. Logo a 30 de agosto, o TC comunicou que tinha decidido, de forma unânime, pela inconstitucionalidade, já que a lei restringia o direito à "inviolabilidade da correspondência". Marcelo vetou-a e o Governo deixou cair o tema.
Novembro de 2022 - Europol e Interpol
Também se decidiu em menos de um mês. A 17 de novembro, o presidente enviou para o TC o diploma que altera a tutela da colaboração com a Europol e Interpol, por se tratar de um texto relativo a "direitos fundamentais" que "causou a divisão a meio do Parlamento". Só o PS não votou contra, com os restantes partidos a alertarem que a passagem dos gabinetes da Europol e Interpol para a dependência do Governo traria riscos de "governamentalização" da investigação criminal. A deliberação do TC não tardou: a 12 de dezembro, o tribunal fez saber, em acórdão, que as normas em causa não são "passíveis de gerar uma invasão da esfera de competências do Ministério Público" pelo Governo, pelo que não havia "violação da separação de poderes". Marcelo promulgou o diploma no próprio dia.