Marcelo enviou três diplomas para o Constitucional desde a reeleição. Mudança não se deve a corte com Costa, porque "nenhum dos dois teria vantagem nisso", diz Viriato Soromenho-Marques.
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Marcelo Rebelo de Sousa já enviou mais diplomas para o Tribunal Constitucional (TC) desde que venceu as presidenciais de janeiro do que nos cinco anos anteriores. Em 2021, o presidente da República pediu a fiscalização de três projetos, contra apenas um entre 2016 e 2020. Viriato Soromenho-Marques, catedrático de Filosofia Política, reconhece a mudança de atitude, mas não acredita que seja por "cálculo". Defende que o corte entre presidente e primeiro-ministro continua a ser improvável, já que não beneficiaria nenhum dos dois.
O chefe do Estado recorreu ao TC pela primeira vez em agosto de 2019 - três anos e meio após chegar a Belém - devido a um projeto sobre gestação de substituição (vulgarmente conhecida por barrigas de aluguer). Esse processo, recorde-se, continua por decidir.
Já este ano, em fevereiro, Marcelo começou por fazer o mesmo com a eutanásia. Seguiu-se, em julho, a Carta dos Direitos Digitais, depois de a ter promulgado. E, em agosto, foi a vez da lei que facilita o acesso do Ministério Público a e-mails sem o controlo prévio de um juiz de instrução.
Viriato Soromenho-Marques reconhece que os pedidos de Marcelo ao TC no segundo mandato "já são alguns", mas acredita que surgiram porque são temas bem "delicados" e envolvem direitos individuais. "O presidente procura defender-se através de pareceres juridicamente sólidos", sustenta.
Saída de Rio influencia
Em março, quando Marcelo promulgou os apoios sociais aprovados no Parlamento - contra a vontade do Governo, que pretendia o veto -, Soromenho-Marques disse ao JN que presidente e primeiro-ministro tinham deixado de ser "companheiros de estrada". Agora, considera que passaram a ter uma relação "de vincado realismo político", da qual ambos saem beneficiados.
"Nenhum dos dois tem vantagens" em estar em conflito, diz o catedrático da Universidade de Lisboa. De um lado, Costa quer acabar o mandato; do outro, Marcelo entende que o cenário de eleições antecipadas levaria a nova vitória "e, provavelmente, ao reforço" do PS. "Estão unidos por interesse e não por amor", ironiza Soromenho-Marques. O que é positivo para ambos: "O afeto, na política, obnubila o juízo", refere, ilustrando com a amizade entre Costa e o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, que tem prejudicado o primeiro-ministro.
O "realismo político" a que o académico alude substituiu o "afeto" inicial entre Marcelo e Costa. Soromenho-Marques recorda um episódio de 2016, em Paris, em que o primeiro-ministro segurou o chapéu de chuva ao presidente, ou a visita à Autoeuropa, em 2020, em que Costa lançou a recandidatura presidencial de Marcelo. "Essas amizades acabam por ser prejudiciais. Penso que acabaram e é bom que tenham acabado."
Mas poderá a eventual saída de Rui Rio da liderança do PSD após as autárquicas alterar a visão do presidente? "Marcelo é das pessoas mais adaptativas da política portuguesa", avalia Soromenho-Marques, admitindo "mudanças de leitura" por parte do presidente. Soromenho-Marques acredita que Rio sai, mas duvida que os sociais-democratas recuperem a curto prazo. "O PSD é o partido que vai perder mais deputados" em 2023. Assim, o "realismo" da relação Marcelo-Costa pode estar para durar.
À lupa
Eutanásia
O presidente pediu a fiscalização preventiva do projeto de lei sobre a eutanásia em fevereiro. Aprovado por BE, PAN, PEV e IL, o diploma recebeu também a maioria dos votos favoráveis do PS e de uma minoria do PSD. O novo texto após o chumbo do TC deverá ser discutido até outubro.
Direitos Digitais
A Carta resultou de projetos de PS e PAN. Foi aprovada também por PSD, BE e CDS, sem votos contra. Mas o artigo 6.º geraria polémica, por definir o que é desinformação e prever o apoio estatal a "fact-checkers". Marcelo promulgou a Carta em maio e pediu a fiscalização sucessiva em julho, dizendo que o conceito de desinformação é "vago e indeterminado".
Acesso a e-mails
O pedido mais recente foi a fiscalização preventiva sobre o novo regime de acesso a informação sensível no correio eletrónico. A proposta do Governo foi aprovada por PS, BE e PAN, apesar das reservas da Comissão de Proteção de Dados.
Apoios sociais
Os três diplomas foram aprovados por todos os partidos, exceto o PS. Marcelo promulgou-os mas o Governo recorreu ao TC e venceu. Marcelo disse que ganhou "politicamente".
Usou veto 24 vezes
Marcelo já usou o veto político por 24 vezes desde que é presidente. A última foi na quarta-feira, a um projeto sobre apoio à economia local.