Marisa Matias considera "lamentável" que, num país com uma maioria de centro-esquerda, esta "não se faça representar" nas eleições presidenciais e critica Marcelo Rebelo de Sousa por deixar "seletivamente fechadas" algumas janelas de Belém. "Não daria posse a um Governo apoiado pelo Chega", assegurou.
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Para as presidenciais, a candidata apoiada pelo Bloco de Esquerda fixou como uma boa meta "um melhor resultado" do que o alcançado nas últimas eleições, nas quais obteve o terceiro lugar e quase meio milhão de votos - a melhor marca de sempre de um candidato presidencial apoiado exclusivamente pelos bloquistas. "Se eu me estou a recandidatar, para mim, um resultado bom seria ter um melhor resultado do que tive nas eleições anteriores (...) e acho que precisamos também, todos e todas, de nos mobilizar enquanto cidadãos e cidadãs politicamente ativos e dar uma lição às forças não democráticas", assumiu a bloquista, em entrevista à agência Lusa.
Quando se candidatou às últimas presidenciais, então com Cavaco Silva como chefe de Estado, Marisa Matias defendia que "num Palácio de Belém que cheira a bafio" ia ser "preciso abrir as janelas para entrar ar fresco". "Eu acho que não podemos de maneira nenhuma comparar o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa com o de Cavaco Silva. Houve seguramente janelas que foram abertas. Agora também houve algumas que seletivamente ficaram fechadas", respondeu, quando confrontada com a antiga declaração.
Evitando "grandes floreados", a eurodeputada do BE não escondeu que se parte para as eleições presidenciais com "um favorito à eleição", que é Marcelo Rebelo de Sousa, contra quem se apresenta e faz questão de marcar as suas diferenças, desde a visão sobre a saúde, passando pelas questões laborais e do sistema financeiro e até à posição em relação à eutanásia. "Creio que é um dos temas que realmente precisa de ser discutido e, portanto, o facto de ser muito discutido não me afeta, mas acho que há um momento em que temos de decidir e que já devíamos ter dado esse passo", destaca, esperando que a lei da eutanásia, se for aprovada no parlamento, não seja bloqueada "em nenhuma das esferas do poder". Com a crise pandémica, na perspetiva de Marisa Matias, percebe-se "ainda mais aquilo que é a importância dos serviços públicos, em particular do Serviço Nacional de Saúde", considerando que "falta uma voz de defesa clara e inequívoca do SNS".
Numa coisa, porém, Marcelo e Marisa são parecidos: nos afetos, no contacto e na proximidade às pessoas, gestos que numa campanha marcada por uma crise sanitária terão de ser repensados. Mas, segundo a candidata, com a seriedade a que a covid-19 obriga, é preciso "assumir as recomendações, ser intransigentes no cumprimento das normas sanitárias, o que faz da campanha uma campanha completamente diferente das anteriores".
"O facto de haver distanciamento físico não é, de nenhuma forma nem pode ser, sinónimo de distanciamento social. Desse ponto de vista esta campanha, como todas as outras, têm e devem servir para ouvir pessoas, para ouvir os seus problemas, para trocar ideias, para percorrer o território, obviamente cumprindo todas as normas sanitárias", antecipou.
PS "demitiu-se" do combate nas presidenciais
"Seria lamentável que um país que tem ainda uma maioria - e espero que ainda por mais tempo - de centro-esquerda na Assembleia da República, [esta] não se faça representar devidamente nas eleições presidenciais", afirmou, em entrevista à agência Lusa, a recandidata apoiada pelo BE às eleições de 24 de janeiro. "O Partido Socialista demitiu-se de fazer este combate do ponto de vista formal", declarou a eurodeputada, para quem no momento atual não se vislumbra, no campo da esquerda, nenhuma candidatura "que seja capaz de reunir um consenso tão alargado que se justifique a ausência das outras candidaturas".
Segundo Marisa Matias, "estas candidaturas são importantes do ponto de vista da democracia" e "representam o espaço da esquerda, na sua diversidade". O país está a viver "um momento muito complicado", avisa a dirigente do BE, pelo que "faz falta essa resposta de esquerda à crise, também neste espaço, que é o espaço para a Presidência da República".
Reiterando a importância de uma candidatura com um "um programa de esquerda na defesa dos serviços públicos", Marisa Matias referiu que isso não a impediu de "refletir muito sobre a [sua própria] candidatura", mas sem "hesitação": "A decisão foi muito pensada, é óbvio que ninguém apresenta uma candidatura desta natureza sem refletir muito sobre ela antes. Mas a decisão foi tomada, não pensei voltar atrás."
Questionada sobre os pontos de contacto com os outros candidatos da esquerda - a socialista Ana Gomes e o comunista João Ferreira - a bloquista afirma que todos têm "margens interessantes de convergência e divergência". "Nós não estamos numa situação em que se possa falar de que uma candidatura sozinha seria mais forte do que estas candidaturas (...) a soma das partes chega a mais gente e é mais representativa do que se fosse apenas uma candidatura eleitoral", justifica. Para Marisa Matias, o facto de haver várias candidaturas até é benéfico, porque "mobiliza mais eleitorado de esquerda, do que uma candidatura de alguém" que seja consensual, o que não acontece "nem mesmo a própria Ana Gomes" dentro do PS.
Em relação à socialista, a candidata presidencial refere a amizade e o trabalho conjunto em muitos temas no Parlamento Europeu, como a corrupção, mas também as divergências relativas ao Orçamento do Estado e também ao offshore da Madeira. Quanto a João Ferreira, Marisa Matias salienta a diferença em relação à visão do mundo, "nomeadamente no que diz respeito à política internacional".
Nesta entrevista, a eurodeputada volta a afirmar-se como sendo social-democrata, que trabalha "todos os dias" e defende "as conquistas históricas da social-democracia", mas admite perceber algumas das razões pelas quais essa sua afirmação pode provocar confusão no eleitorado. "Não nos podemos esquecer que estamos num país, que tem esta coisa única no mundo que é ter um partido de direita que se chama social-democrata", conclui.
Não daria posse a um Governo apoiado pelo Chega
Em caso de ser eleita Presidente da República, Marisa Matias "não daria posse a um Governo apoiado pelo Chega", garantiu, lembrando o "cordão sanitário" feito à extrema-direita alemã. A candidata reiterou que o seu adversário é Marcelo Rebelo de Sousa, assumido, ainda assim, que, tal como qualquer candidato democrático, não se pode "demitir do combate à extrema-direita", ou seja, a André Ventura.
"Eu não daria posse a um Governo apoiado pelo Chega", garantiu, marcando assim mais uma diferença em relação a Marcelo Rebelo de Sousa que, em entrevista à SIC na sexta-feira, referiu que, em termos constitucionais, não pode ser negado o apoio parlamentar de "um determinado partido" a uma solução de Governo, numa alusão ao partido de Ventura.
Marisa Matias diz que não cabe a um Presidente da República definir se um partido o pode ser ou não - essa é uma tarefa do Tribunal Constitucional -, mas sublinha que o chefe de Estado tem como obrigação "defender e proteger a Constituição e a democracia, bem como os valores que lá estão representados". "Eu não coloco de parte que haja no futuro a necessidade de discutirmos ou não a existência do Chega, mas isso porque o próprio André Ventura parece que anda a pedir isso há não sei quanto tempo", critica.
Na perspetiva da dirigente bloquista, o deputado e líder do Chega tem "um discurso absolutamente racista, xenófobo" e propõe "coisas inaceitáveis" como recuperar a prisão perpétua em Portugal, que "foi abolida em Portugal no século XIX". "Ele traz para o século XXI ideias do século XIX e eu acho que às vezes é mesmo a pedir para fazer esse combate, a pedir que alguém peça a ilegalização, a pedir que alguém o faça de vítima", afirma. Marisa Matias estabelece a diferença entre "a questão da ilegalização" - debate que não coloca de lado, mas que "não pediria nem tomaria iniciativa" - e a possibilidade de "dar posse a um Governo", que "é uma coisa completamente diferente".
Sobre a possibilidade de o candidato André Ventura poder ficar à sua frente nas eleições de 24 de janeiro, a dirigente do BE é perentória: "Acho que é uma derrota sim, é uma derrota para a democracia, não é só para mim"
OE2021
Não há corte de relações com PS
Questionada sobre o voto contra do BE no Orçamento do Estado para 2021 (OE2021) e os efeitos que antecipa nos seus resultados eleitorais, numa altura em que as sondagens indicam uma queda do partido, Marisa Matias, dirigente do Bloco e apoiante dessa decisão nos órgãos do partido, disse que a proposta do Governo ficou "muito aquém" das necessidades. É claramente "um orçamento fora de tempo", que não foi feito "para tempos de pandemia porque não traz a proteção necessária" e é insuficiente nesta resposta.
"Eu acho que fizemos - e digo fizemos porque fiz parte disso - aquilo que tinha de ser feito no sentido de que, num momento em que as respostas à crise não estão à altura, é preciso lutar e exigir respostas à altura", assume. No entanto, para a eurodeputada, "isso não significa que haja um corte de relações" com os socialistas e muito menos determina que "o BE deixe de falar ou de negociar com o Partido Socialista". "Isto significa é que os termos estão definidos, as cartas estão na mesa e infelizmente creio que a realidade nos vai dar razão mais rápido do que aquilo que seria desejado", antecipa.
Com a garantia de que o BE continuará a falar e a negociar, Marisa Matias atira a bola para o lado dos socialistas: "haja vontade também do lado do Partido Socialista para poder acolher algumas dessas propostas". "Em relação ao resto acho que as pessoas percebem perfeitamente, sinceramente acho que sim", responde em relação à compreensão dos portugueses sobre este voto contra.
A candidata presidencial recorda que o BE foi "o partido que logo a seguir às eleições legislativas se disponibilizou para que continuasse a haver acordo escrito e para que a geringonça tivesse uma continuidade", o que na altura foi rejeitado pelo PS. "Quem recusou a existência da geringonça não foi o Bloco de Esquerda, foi o Partido Socialista", clarifica.
O BE, lembra Marisa Matias, "não falhou à responsabilidade de aprovar o Orçamento Suplementar que foi necessário este ano" devido à pandemia, criticando que o OE2021 aprovado não traduza o investimento necessário no Serviço Nacional de Saúde nem na proteção do emprego.