Lei do OE 2022 prevê contratação de clínicos indiferenciados para suprir falta de médicos de família. Ordem contra "cuidados de primeira e de segunda categoria" convoca reunião.
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Os centros de saúde com pior cobertura de médicos de família estão autorizados a contratar clínicos indiferenciados, ou seja sem especialidade em Medicina Geral e Familiar, para assumirem listas de 1900 utentes que não têm equipa de saúde familiar. É uma medida excecional, que entrou em vigor anteontem com a nova Lei do Orçamento do Estado (OE) 2022, e que apanhou de surpresa a Ordem e os sindicatos médicos.
"Incrédulo" com o que considera ser "o mais severo ataque à carreira médica" e à especialidade, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) pediu ao bastonário a convocação urgente de um fórum médico de Medicina Geral e Familiar. O encontro, que vai juntar a Ordem dos Médicos, o SIM, a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) e a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar está marcado para a próxima segunda-feira, às 15 horas.
1700 estão fora do SNS
E dessa reunião sairá "uma posição conjunta que proteja as pessoas porque não podemos oferecer medicina de primeira e de segunda categorias só porque o Estado paga mal aos médicos e não consegue retê-los no SNS", afirmou, ao JN, Miguel Guimarães, bastonário dos Médicos, lembrando que há mais de 1700 médicos de família a trabalhar nos setores social e privado.
Segundo o artigo 209 da Lei do OE 2022, nos centros de saúde com uma taxa de cobertura de médico de família inferior à média nacional os responsáveis podem, "a título excecional", contratar a termo incerto "médicos habilitados ao exercício autónomo da profissão", na proporção de um médico por cada 1900 utentes sem médico de família.
Sindicatos e ordens não têm dúvidas de que o termo "médicos habilitados ao exercício autónomo da profissão" se refere a médicos com o curso de Medicina e um ano de internato de formação geral. Ou seja, médicos que não têm a especialidade de Medicina Geral e Familiar.
A estes médicos, lê-se no artigo, "compete assegurar consulta médica, especialmente em caso de doença aguda, aos utentes inscritos numa lista pela qual ficam responsáveis". A lista vai sendo atualizada, à medida que os inscritos passam a ter médico de família.
A lei refere ainda que estes médicos vão ganhar o mesmo que um interno (1.ª posição remuneratória) por 40 horas de trabalho semanais, mais um suplemento de 30% da remuneração base. É o equivalente a 2414,7 euros, menos 365 euros do que auferem os especialistas no início da carreira.
O artigo diz ainda que "o Governo pode contratar médicos estrangeiros nas mesmas condições de qualidade, segurança e equidade em que são contratados os médicos portugueses". O que significará que poderão ser contratados médicos estrangeiros sem especialidade para as mesmas funções. O JN questionou o Ministério da Saúde, mas não recebeu resposta em tempo útil.
É ainda ao abrigo daquele artigo que o Governo vai majorar em 60% a remuneração dos recém-especialistas que aceitem trabalhar em unidades de cuidados de saúde personalizados de 20 agrupamentos de centros de saúde (15 dos quais em Lisboa e Vale do Tejo), com uma cobertura de médicos de família inferior à média nacional.
O incentivo é cumulativo ao que estava em vigor para as zonas carenciadas desde 2017 (mais 40% da remuneração base) e, segundo anunciou ontem a secretária de Estado da Saúde, na Comissão de Saúde, há 52 recém-especialistas que poderão usufruir dos dois incentivos, um acréscimo de 100% à remuneração base, num total de 5567 euros (brutos) por mês.
Reforma
Estatuto do SNS aprovado na próxima semana
O Estatuto do SNS será aprovado na reunião de Conselho de Ministros da próxima semana e nos 180 dias seguintes à entrada em vigor do diploma será publicada a legislação necessária à sua implementação, anunciou ontem a ministra da Saúde, na primeira audição regimental na comissão parlamentar de Saúde da nova legislatura.
No âmbito do Estatuto do SNS está a criação de uma Direção Executiva do SNS que terá a missão de articular a resposta assistencial e o funcionamento em rede dos cuidados de saúde e a criação do regime de dedicação plena dos médicos, que vai ser negociado com os sindicatos.
Soltas
Consultas a utentes sem médico
Em 2021, foram realizadas 4,1 milhões de consultas médicas nos cuidados primários a utentes sem médico de família e nos primeiros cinco meses deste ano foram 1,7 milhões, disse Marta Temido, considerando não ser exato dizer que estes utentes não têm acesso a consultas. A diferença é que não são sempre feitas pelo mesmo médico e enfermeiro, esclareceu na Comissão de Saúde.
Falta de obstetras obriga a rever a rede
Dos cerca de 1800 obstetras inscritos na Ordem dos Médicos, 35% têm mais de 65 anos, ou seja poderiam pedir dispensa do trabalho noturno e da urgência. "Mesmo que conseguíssemos contratar para o SNS todos os ginecologistas e obstetras do país, continuaríamos a ter dificuldade de responder nalgumas linhas se não reorganizarmos a atual rede", afirmou a ministra da Saúde.
Comissão avalia mortalidade materna
Os números da mortalidade materna (17 óbitos em 2020), os mais altos dos últimos 38 anos, como o JN noticiou em primeira mão, são "números pequenos" em termos estatísticos que devem ser analisados "numa lógica de séries temporais de cinco a 10 anos", referiu Marta Temido , adiantando que a comissão de saúde materna terá a avaliação pronta até final do ano.