O presidente da Associação Europeia de Medicina Perinatal defende que Portugal deve fazer uma "avaliação rigorosa" e anual da mortalidade materna. Mas a análise tem de ir além dos números. Diogo Ayres de Campos considera ainda importante a realização de inquéritos confidenciais, à semelhança do que acontece noutros países, e a constituição de um grupo de trabalho na Direção-Geral de Saúde (DGS) para analisar caso a caso.
Corpo do artigo
Em causa está o aumento da taxa de mortalidade materna registado ao longo de 2020, noticiada pelo JN a 24 de maio. No primeiro ano de pandemia, a taxa atingiu os 20,1 óbitos por 100 mil nascimentos. Há 38 anos que não era registado um valor tão alto em Portugal.
"Nós, como qualquer país europeu, devemos ter uma avaliação rigorosa anual da mortalidade materna que não fique só pelos sistemas de informação. Implica haver um grupo de pessoas que avalia os casos e que deve ser sediado na DGS", referiu Ayres de Campos, esta sexta-feira, aos deputados da Comissão de Saúde.
De acordo com o especialista, há países que realizam inquéritos confidenciais sobre as mortes maternas. "Porque são estes inquéritos confidenciais mais importantes? Porque, além da avaliação das causas, permitem avaliar se seria ou não evitável aquela morte, de forma confidencial, para que as instituições consigam aprender com isso, para que não volte a acontecer", justificou.
Para Diogo Ayres de Campos, "a mortalidade materna tem de ser investigada caso a caso" para aferir se os números apresentados se tratam "realmente de mortalidade materna". Isso implica "um estudo aprofundado". "Só são mortes maternas as que ocorrem durante a gravidez ou nas seis semanas seguintes e que têm como causa a gravidez ou foram agravadas pela gravidez", explicou.
"Degradação dos cuidados"
Questionado pelos deputados sobre as razões que poderão ter conduzido ao aumento da mortalidade materna em 2020, Ayres de Campos revelou que a comissão nomeada pela DGS para avaliar os casos "ainda não reuniu". Ainda assim, o médico detalhou que, classicamente, "a acessibilidade aos cuidados de saúde é uma das causas". Também a informação disponível para a população, nomeadamente sobre quais as situações que devem ou não levar aos cuidados de saúde, pode ter influência.
Já no que toca ao aumento da idade para ter o primeiro filho, Ayres de Campos afirmou que pode trazer "maiores riscos de saúde". Ainda assim, recordou o especialista, "não houve um aumento nestes quatros anos da idade materna". "Tem vindo a aumentar paulatinamente ao longo dos últimos 20 anos, mas não justifica por si só esta subida grande [de mortalidade]", considerou.
O especialista sublinhou ainda que "há vários indicadores de que tem havido pouca estratégia dos cuidados obstétricos" e, assim, "uma degradação dos cuidados". Lembrou que esta área teve relevância no final dos anos 80 e início dos anos 90, quando houve uma "melhoria enorme nos indicadores".
"Há certas coisas que são incontornáveis: quando temos um hospital, por pequeno que seja, com um quadro de três médicos especialistas e todos com mais de 60 anos, não consigo dizer que não seja degradação. Não há outra palavra para descrever", exemplificou Ayres de Campos, sublinhando ainda "a enorme dificuldade em reter os especialistas de obstetrícia e ginecologia". Em parte, "por causa da pressão da medicina privada".
"É preciso uma estratégia e é preciso reorganizar os cuidados maternos e perinatais porque têm grandes implicações na população", alertou.
Necessário perceber magnitude do "desrespeito pelas mulheres"
Questionado pelos deputados sobre a violência obstétrica em Portugal, Ayres de Campos admitiu a existência de casos de "desrespeito" pelas mulheres. Até porque, caso contrário, "as pessoas não se queixavam".
"De facto, pelo que é reportado pelas mulheres em inquéritos às vezes feitos na internet, há situações de ausência de consentimento informado, o que é uma coisa grave. É contra a lei. Há casos de desrespeito pelas mulheres e casos de excesso de intervencionismo. Agora, a questão é a magnitude deste problema. Não temos, infelizmente, a noção da verdadeira magnitude do problema, do excesso de intervencionismo", frisou o especialista, ressalvando ainda que, nalgumas áreas, há "um esforço para reduzir o intervencionismo, nomeadamente nas episiotomias".
"Não temos, infelizmente, dados muito objetivos e fiáveis em termos deste desrespeito. Devíamos ter dados mais fiáveis", referiu.