Mais de 60% da população é obesa ou tem excesso de peso. Apelo para comparticipação de medicamentos.
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A evidência científica já demonstrou que há pelo menos dez tipos de cancro que podem ser associados à obesidade, cujo Dia Nacional e Europeu se assinala hoje. De acordo com Paula Freitas, presidente da Sociedade portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO), os mais comuns são os cancros da mama, do ovário, do fígado e do cólon e reto. "Estes são os que têm maior correlação", adiantou a especialista ao JN. E segundo um estudo do "The New England Journal of Medicine", também se pode considerar a doença um fator de risco nos cancros do rim, da vesícula, do corpo uterino, mieloma múltiplo, pâncreas e esófago.
"Temos uma doença grave, crónica, multifatorial, que está na génese de muitas outras. Hoje, mais de 200 doenças estão associadas" a esta condição, sublinhou. Diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares são os problemas de saúde mais comuns. No entanto, se para estes últimos os tratamentos são comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde, a legislação impede que os medicamentos para tratar a obesidade tenham o mesmo benefício, por serem considerados produtos para emagrecer.
"Mesmo nas formas mais graves de obesidade, a cirurgia é comparticipada", prosseguiu Paula Freitas, mas para resolver o problema a montante, isso não acontece. "Se nós já temos mais de 60% da população portuguesa com obesidade e com excesso de peso (pré-obesidade), temos que a tratar". A médica lamentou que alguns profissionais de saúde, obesos e até o poder político "não vejam ainda a obesidade como uma doença".
Em abril, a SPEO e a Associação de Doentes Obesos e Ex-obesos de Portugal (Adexo) tinham agendada uma deslocação ao Parlamento para sensibilizar o poder político para a necessidade de comparticipar estes medicamentos. Mas o confinamento levou ao adiamento do encontro para junho.
"É altura de os nossos governantes deixarem de ter horizontes de quatro anos, como a legislatura. O que estamos a pedir é que, de uma vez por todas, considerem prioritário o tratamento. Porque, ao fazerem isso, estão a tratar as doenças cardiovasculares, respiratórias, as articulares, diabetes e muitas outras", reforçou Carlos Oliveira, presidente da Adexo.
Mais de 200 euros por mês
Em 2019, as farmácias venderam 40 397 embalagens de medicamentos sujeitos a receita médica para tratamento de obesidade e perda de peso, mostram os dados da consultora IQVIA Portugal, PharmaScope Combined. Nos quatro primeiros meses de 2020, foram vendidas 13 130. Estes dados englobam os medicamentos específicos para tratamento da obesidade e perda de peso, com e sem comparticipação.
De acordo com Carlos Oliveira, um doente que tome medicamentos para tratar a obesidade, sem comparticipação, gasta de 120 a mais de 200 euros por mês. Um problema agravado pelo facto de as pessoas com mais dificuldades económicas serem as que têm menos acesso a uma alimentação correta.
Motivo que levou estas duas entidades a alertar para o aumento das dificuldades económicas resultantes da poderem aumentar o risco de obesidade.
OUTROS DADOS
Três medicamentos
Segundo Paula Freitas, há três medicamentos destinados a tratar a obesidade: orlistato, liraglutida (3mg) e a associação de naltrexona com bupropiom.
4,1 milhões em 2019
Em 2019, os portugueses gastaram 4,1 milhões de euros em mais de 47 mil embalagens de medicamentos para tratamento da obesidade e perda de peso, com e sem receita, nas farmácias e parafarmácias. De janeiro a abril de 2020 foram gastos 1,3 milhões de euros em 15 006 embalagens.
"Não me sentia mal com o meu corpo, sentia-me muito mal de saúde"
Doente hipertensa, de 61 anos, passou de 116 quilos para 70 com um bypass gástrico e uma nova disciplina alimentar.
Eram 116 quilogramas (kg), 1,54 m de altura e um corpo de 61 anos. "Não me sentia mal com o meu corpo, sentia-me muito mal de saúde", conta Júlia Ramalho, que pesa agora 70 kg, depois de ter colocado um bypass gástrico, há meio ano.
De Moselos, Viseu, Júlia teve uma vida sedentária a fazer tapetes de arraiolos. Pecava com o pão e o arroz, que comia sem regra. Após ter tido dois filhos, manteve-se nos 57 quilogramas. "Depois, não sei se foi a pílula, fui engordando e aos 35 anos pesava 80 quilos", recorda.
Fez dietas e tomou comprimidos. Perdeu e voltou a ganhar peso. Com 51 anos, ao entrar na menopausa, "o peso disparou até aos 116 quilos", relata Júlia.
"A obesidade é multifactorial. Há causas hormonais, psicológicas. Todos temos necessidade de prazer e o mais imediato é o da comida, uma adição socialmente aceite, mas com resultados pouco aceitáveis", afirma José Morais e Castro, cirurgião no hospital Cuf Viseu, ao qual Júlia recorreu após três anos à espera de cirurgia no Centro Hospitalar de Tondela-Viseu.
Hipertensa, com problemas ortopédicos e apneia do sono, a utente que sofria de obesidade mórbida (correspondente a um índice de massa corporal superior a 40) reunia as condições para fazer uma cirurgia que a fez ganhar uma pequena bolsa, separada do estômago (para saciedade rápida) e uma nova ligação no intestino delgado, que influencia na absorção dos alimentos. Porém, teve de aceitar ser acompanhada por um psicólogo e um nutricionista.
"Às vezes, recusamos operar porque há quem pense que, depois da cirurgia, dá-se um milagre extraordinário, e não. Há disciplina. O que damos é uma segunda oportunidade ao doente para mudar de vida", explica o médico, que considera a "seleção apertada" o segredo da taxa de sucesso de 96%.
Júlia Ramalho diz que não lhe custou passar, durante quatro meses, as fases dos chás, dos lácteos, das sopas até poder comer de tudo. "Agora fico cheia com qualquer coisa", adianta.
Se comer de mais, "o equivalente a duas conchas de sopa, a indisposição é certa", assegura a nutricionista Ana Isabel Ferreira, que ensinou Júlia a comer e a mastigar bem. "As mudanças alimentares são para a vida", acrescenta.
Com 70 kg e a esperança de chegar aos 50, Júlia sente-se saudável. A maior alegria aconteceu menos de um mês depois da cirurgia: "Quando subi à balança e vi que pesava 90 kg, só pensava: agora é que isto vai!".