País regista a pior taxa de execução da União Europeia. Ministério da Agricultura rejeita tratar-se de um fracasso.
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Desde 2017, Portugal desperdiçou quase seis milhões de euros em fundos europeus atribuídos ao programa Regime de Fruta Escolar, destinado a alunos do 1.º Ciclo. A taxa de execução é a mais baixa da União Europeia - no ano letivo passado, foi de 38%, tendo sido gastos, em 2020/21, 1,25 milhões dos quase 3,3 milhões atribuídos a Portugal. O segundo e terceiro países com piores resultados foram a Bélgica e a Espanha que gastaram, respetivamente, 73% e 86% da dotação. Todos os outros países aproveitaram a totalidade das verbas.
De acordo com o Ministério da Agricultura, no ano passado, o regime da fruta escolar chegou a 160 mil alunos. Nas escolas de 1.º Ciclo públicas, estavam inscritos em 2019/2020 (dados mais recentes da Direção-Geral de Estatísticas da Educação), mais de 317 mil alunos, o que significa que o programa não terá chegado a metade.
"O objetivo é pôr as crianças a comer fruta e hortícolas também ao lanche para promover bons hábitos alimentares em idades precoces e contrariar, no longo prazo, o problema da obesidade infantil. As candidaturas são feitas pelos municípios e são as escolas que distribuem duas peças por semana, desde maçãs, bananas, cerejas ou tangerinas e ainda tomate ou cenouras às rodelas", explica o Ministério da Agricultura, que coordena o programa. Em respostas enviadas ao JN, o gabinete de Maria do Céu Antunes rejeita, porém, que a execução seja um fracasso. "Efetivamente registou-se uma baixa adesão por parte de alguns municípios", como "muitas câmaras" da ´Área Metropolitana de Lisboa ou nenhum agrupamento da Região Autónoma da Madeira, que não aderiram ao programa. "Em alguns casos por desinformação".
Um inquérito promovido pela Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil (APCOI) concluiu que cerca de 10% das autarquias desconhecem o programa, apesar de ele existir desde 2009. Os fundos são atribuídos para 30 semanas (85% do ano letivo) e no "início era muito burocrático. Por exemplo, o reembolso exigia o mapa de presenças dos alunos, o que muitas vezes implicava um pré-investimento sem retorno. No entanto, está muito mais simplificado. Devia haver mais vontade em aproveitar esta verba. Não faz sentido nenhum", defende o presidente da APCOI, Mário Silva.
Aulas de degustação
O programa não se cinge à distribuição dos alimentos. As escolas têm de promover atividades, como aulas de degustação, jardinagem, visitas a explorações agrícolas ou a mercados, com o objetivo de divulgar hábitos alimentares saudáveis, o que é a agricultura sustentável ou a sazonalidade dos produtos.
"O programa é um acréscimo. Não causa constrangimentos às escolas", garante, por seu turno, o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), Manuel Pereira, assegurando que no seu agrupamento (Cinfães), cuja sede "tem 300 árvores de fruto, sempre foi um sucesso".
"O país não devia desperdiçar nem este nem outros fundos. Ainda para mais, há falta de coerência, se pensarmos que os bares das escolas estão proibidos de vender diversos produtos para incutir uma alimentação saudável. Deve-se construir a casa pelos alicerces e criar bons hábitos desde cedo", lamenta o presidente da Associação Nacional de Diretores, Filinto Lima.
No ano passado, aderiram ao programa 140 municípios. Em 2021, candidataram-se 173 dos 308 municípios.
Em detalhe
173 municípios candidataram-se este ano letivo ao fundo do Ministério da Agricultura.
6,73 euros por aluno para dois lanches é o financiamento-base da UE, no caso da fruta, para o leite é de 4 euros por aluno. A lista inclui maçãs, clementinas, bananas, cerejas, uvas, ameixas, kiwis, dióspiros, laranjas ou anonas.
Uma em três tem excesso de peso
Uma em cada três crianças, dos seis aos oito anos, em Portugal, tem excesso de peso. Entre 2008 e 2019, a prevalência do excesso de peso baixou de 37,9 para 29,7% e a da obesidade de 15,3 para 11,9%. Uma evolução que pode ter sofrido um retrocesso durante a pandemia, alerta Mário Silva, da APCOI.
Projeto
Distribuição de leite tem 100% de adesão
Além da fruta, o programa também abrange a distribuição de leite escolar a alunos do 1.º Ciclo e Pré-Escolar. Neste caso, a execução foi de 100% no ano passado e chegou a 400 mil alunos, de acordo com o Ministério da Agricultura. Aliás, desde 2017, só no ano 2019/2020 a dotação (mais de 2,2 milhões de euros) não foi completamente executada, sendo de 97%. A adesão à distribuição do leite é muito superior e a execução já não é a pior. No ano passado, os Países Baixos, que gastam a totalidade da verba relativamente à fruta, só aproveitaram 13,4% da dotação atribuída ao leite (superior a 2,4 milhões). Já a Bélgica gastou 52% das verbas e o Luxemburgo 80%. Em resposta enviada ao JN, o Ministério explica que entre 2017 e 2019 a candidatura para o leite escolar era assegurada pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, "numa candidatura única, abrangendo todos os agrupamentos de escolas", o que se revelou "um importante facilitador". "É mais fácil de articular. Até porque falamos todos a mesma linguagem", ironiza Manuel Pereira. A embalagem de leite é distribuída uma vez por semana, também durante 30 semanas.
Dos alimentos processados às "lancheiras bonitas"
Duarte Vilela, de 9 anos, põe o dedo no ar quando a professora Carmo Peres diz que na EB1 de Afife, em Viana do Castelo, há "supercampeões" no consumo de fruta. E dispara: "Eu como uma banana em 15 segundos". A brincadeira provoca o riso dos colegas e das docentes, mas o assunto é sério. A escola aderiu este ano ao "Heróis da Fruta" - um projeto que visa incentivar melhores hábitos alimentares, com recurso a personagens lúdicas que dão superpoderes às crianças - pela necessidade de "melhorar as lancheiras que, por vezes, vinham lotadas de produtos processados e embalados". "É o mais rápido, e os pais, com a falta de tempo, acabam por optar por esses alimentos. Entretanto, as coisas começaram a mudar", garante Carmo Peres, referindo que já há cada vez mais "lancheiras bonitas". "Trazem fruta e não é só isso: algumas delas vê-se que foram feitas com muito cuidado. Vêm com a fruta partida e muito coloridas", comenta, satisfeita, sublinhando que a maioria dos alunos faz na escola "dois lanches diários, o da manhã e o da tarde".
Os frutos da dinâmica entre os 36 alunos, professores e encarregados de edução da EB 1 de Afife também já são visíveis fisicamente no espaço escolar. Duarte, o campeão da banana e também "o bicho-carpinteiro da escola (por ser irrequieto)", segundo a professora Carmo, fez questão de mostrar à reportagem do "Jornal de Notícias" a cesta feita com fruta da época, que enfeita uma das janelas da sala de aula. E no refeitório foram afixadas nas paredes fotografias ampliadas dos trabalhos que as crianças foram desafiadas a fazer em casa, juntamente com os pais. O TPC era criar um prato saudável utilizando frutas e fotografá-lo para o apresentar.
"Resultou muito bem. Fizeram pratos muito bonitos", avalia a professora, referindo que as atividades relacionadas com o projeto também incluem sensibilização ambiental, com incidência nos desperdícios de plástico. Quanto menos embrulhos, melhor.
No dia da reportagem, Francisca Silva, de 8 anos, trazia na lancheira metálica uvas brancas, a sua fruta preferida. Rúben dos Santos, de 6 anos, que é considerado pela professora um dos campeões das lancheiras bonitas e cuidadas, contou: "Trago sempre fruta para comer de manhã. As minhas preferidas são o kiwi e a tangerina". O colega Lucas Lemos, da mesma idade, disse que gosta de "morango e pera", e que, "às vezes", traz fruta na lancheira. E Rúben apressou-se a contar um episódio que os divertiu: "No outro dia, a melancia do Lucas estava cheia de formigas".
A presença da fruta na alimentação dos alunos de Afife já vem de trás. Na porta da escola está afixada a ementa das refeições para toda a semana. São programadas por uma nutricionista da Câmara Municipal de Viana do Castelo (ler caixa) e, em todas, para sobremesa estão previstos três tipos de fruta da época. "Às vezes, lá vem uma gelatina, mas não mais do que isso", garante Carmo Peres.
Detalhe
Ementas escolares feitas por nutricionista
Manuel Vitorino, vice-presidente da Câmara de Viana do Castelo e vereador da Educação, afirma que a promoção de hábitos de alimentação saudável junto das escolas já existe "há muitos anos" no município. "Já havia uma preocupação de promover o consumo de frutas e legumes, e a redução dos açúcares e de alimentos processados". A ementa dos refeitórios escolares é pensada por uma nutricionista e inclui, além de fruta e legumes, uma opção vegetariana ou sem glúten.