Ansiedade, stress e exaustão extrema - por vezes até ao ponto de burnout, que se traduz num esgotamento físico e emocional - são os principais sintomas apresentados pelos profissionais de saúde mais expostos à pressão do combate à pandemia.
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No Hospital de S. João, no Porto, que criou um programa específico, a procura de apoio psicológico quadruplicou entre 2019 e 2020, passando de cerca de 15 profissionais acompanhados para 60.
Alguns estudos apontam para uma incidência de queixas em cerca de metade dos inquiridos. Como a pesquisa "Saúde mental em tempos de pandemia", feita pelo Instituto Ricardo Jorge em outubro, segundo a qual perto de 45% dos profissionais de saúde manifestam sofrimento psicológico.
O Serviço de Psicologia do S. João "tem criado dinâmicas individuais ou grupais específicas junto dos serviços considerados mais críticos, quer pela sobrecarga física quer pela sobrecarga emocional" e, "no início da pandemia, criou um programa dirigido aos profissionais do Serviço de Urgência [APL - Antecipar, Planear e Lidar], para maximizar a resiliência dos profissionais de saúde", diz o maior hospital do Norte.
Mas nem sempre as queixas se traduzem em pedidos de ajuda, o que em parte explicará a baixa adesão às linhas de aconselhamento psicológico de alguns hospitais. E da própria Ordem dos Enfermeiros, que disponibilizou o serviço a partir do início da pandemia e atendeu "à volta de 10, 12 apelos" na primeira vaga, em cerca de dois meses e meio de funcionamento, registando "o mesmo número desde que a linha foi reativada, em outubro", contabiliza Francisco Sampaio, presidente do Colégio de Saúde Mental.
"Desfasamento tremendo"
"O desfasamento entre os sintomas encontrados nos estudos e a procura de apoio é tremendo", constata. "Uma das coisas que protegem os profissionais de saúde é o significado que o seu trabalho tem, é o facto de sentirem que estão numa missão de salvar vidas, de cuidar de pessoas, uma coisa que é quase transcendental", analisa o bastonário dos psicólogos, Francisco Miranda Rodrigues.
"As pessoas ainda estão num momento em que estão imbuídas da sua missão, e muitas só vão perceber o impacto da pandemia na sua saúde mental no fim", aponta Francisco Sampaio, lembrando que "o estigma da saúde mental está muito presente na sociedade". A psicóloga do Centro Hospitalar de Lisboa Central Sónia Pinote refere o mesmo impacto, e sublinha que "ainda há muita discriminação", mesmo na área da saúde. E nota que "o profissional de saúde, em tempo de crise, não recorre a ajuda. Diz sempre: "eu aguento; precisam de mim"". Por isso, afirma que os "194 casos novos" observados em 2020 em psicologia ocupacional, num universo de oito mil profissionais, face aos 205 detetados em 2019, são "números completamente subnotificados".
Porém, o agrupamento de Lisboa Central, que inclui, entre outros, os hospitais de S. José e Curry Cabral, registou uma duplicação de casos de burnout em 2020, ano em que identificou 12, face à cerca de meia dúzia em 2019. É a mesma síndrome que obrigou Gustavo Carona, médico intensivista de Matosinhos, a parar em novembro, como o próprio tornou público.
Passar um mês sem um ataque de ansiedade é milagre
"Isto chegou muito de repente. Foi como uma chapada de luva preta". O choque foi grande. Sofia ainda tentou equilibrar-se, mas quebrou. Já andava sob stress com as alterações no serviço que surgiram quando pediu horário flexível para poder acompanhar o filho, de oito anos, e "depois entrou a covid, pressão sobre pressão, e isso fez com que explodisse". Tem 27 anos e trabalhava desde 2013 no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde era auxiliar por puro "amor à profissão". Demitiu-se no final do ano passado: "Escolhia a minha sanidade mental ou ir abaixo". Sofia Vilas Boas escolheu viver.
"Foi muita coisa para pouca gente. As regras eram muitas, e iam mudando. Não conhecíamos o vírus, e começou uma pressão enorme. Víamos os doentes a entrar, e estávamos cada vez mais preocupados. Ver pessoas a irem entubadas para os cuidados intensivos de um momento para o outro deu-me cabo da cabeça. Nunca tive um ataque de ansiedade na vida, e, agora, se passo um mês sem ter um é milagre", lamenta.
Os 28 dias que passou isolada na primeira vaga, por ter ficado infetada, também não ajudaram. Seguiu-se um longo período de baixa por depressão. "Comecei a sentir pavor de entrar no hospital outra vez. Não conseguia dormir, chorava muito, tive muitos ataques de ansiedade e vontade de fazer asneiras. Fiquei com pavor do hospital, por muito que goste daquilo". E Sofia vinca o presente do indicativo: "Amo a minha profissão, e trabalhava por gosto; sempre quis trabalhar em ambiente hospitalar, apoiar doentes, lidar com eles...".
Quando regressou, em outubro, novo choque. "Já não era auxiliar; quase parecia menina da limpeza. Já não lidava com doentes, só com limpezas e mudanças de serviços. O rácio de auxiliares era pouco para o serviço. Entrei em parafuso. Trabalhei uma semana e tive de pedir baixa outra vez", recorda. "Cheguei ao fundo. Foi um esgotamento completo. Deixei de ter vontade de viver. As minhas colegas diziam: "não és a Sofia que conhecemos"".
Sofia tem consultas de psicologia desde novembro, mas teve de chegar "ao limite" para pedir ajuda. "Resisti sempre ao apoio psicológico. Não foi por vergonha, mas por orgulho. Pensei: se já passei por tanta coisa má e ultrapassei, também vou conseguir ultrapassar isto. Mas não consegui. Agora, quero recuperar do impacto que levei da covid, e depois... Saí do hospital de portas abertas".