Sete em cada dez apresentam problemas a nível físico ou mental e mais de um quarto faz medicação. Especialistas defendem desinstitucionalização.
Corpo do artigo
O movimento de diminuição, de ano para ano, de crianças e jovens em acolhimento é acompanhado por um aumento dos que necessitam de apoio na área da saúde mental. Numa vulnerabilidade que se reflete no facto de 69% terem determinadas características de saúde que resultam em necessidades específicas de acompanhamento.
Em 2021, 37,6% tinham acompanhamento psicológico regular e 26,1% pedopsiquiátrico/psiquiátrico. E mais de um quarto fazia medicação psiquiátrica. Tendo em conta o trauma vivido por estas crianças, os especialistas falam mesmo num défice. Porque, no limite, todos precisariam deste apoio. Mas, acima de tudo, de uma família. Num longo caminho de desinstitucionalização a percorrer.
"É quase óbvio que tenha de ser assim. A negligência é a razão que mais justifica a retirada e a proteção de uma criança (70% das situações)", explica ao JN Maria Barbosa Ducharne, coordenadora do Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adoção da Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação do Porto. Para quem, "todos necessitariam" de apoio psicológico, tendo presente a "experiência traumática" vivida e o facto de a negligência ser "a experiência de mau-trato com consequências mais negativas nas crianças, porque pode comprometer o desenvolvimento cognitivo e emocional de uma criança".
Na mesma linha de pensamento, Rui Godinho, diretor de Infância e Juventude da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), com várias respostas sociais nesta área, lembra que a criança em acolhimento é "marcada pelo trauma, com consequências no seu funcionamento psíquico". Entendendo o também membro da direção do laboratório colaborativo ProChild que "não temos um excesso de apoio psicológico, temos um défice".
Há 22 anos a trabalhar no sistema, Rui Godinho entende, ainda, que o movimento de desinstitucionalização explica este aumento: "Já tivemos 15 mil crianças no passado e vai continuar a descer. A consequência é que as patologias que estavam diluídas num grupo grande de crianças ficam mais concentradas".
Um quarto faz medicação
De acordo com o último relatório CASA, que caracteriza a situação de crianças em acolhimento, em 2021, 27,5% faziam medicação (+7,8 pontos percentuais face a 2016). Ainda em termos de saúde, 69% das crianças "apresentavam determinadas características particulares", nomeadamente problemas de comportamento. Sendo que 7,3% tinham uma deficiência mental clinicamente diagnosticada, 6,3% uma debilidade mental e 4,8% problemas de saúde mental.
Com a necessidade de apoio psicológico regular a ser maior quando em contexto de acolhimento residencial (38,6%), do que em acolhimento familiar (22,3%), como sublinha Maria Barbosa Ducharne. "O acolhimento residencial tem mais necessidade de apoio psicológico porque as experiências traumáticas que viveram no início de vida não são respondidas quando a criança é inserida numa instituição de acolhimento. A maior parte o que precisa é de uma família."
Em 2021, apenas 3,5% das crianças estavam em acolhimento familiar. Na SCML, que até 2025 quer reconverter as casas de acolhimento em respostas especializadas, apenas 40% estavam em estrutura residencial. "Uma instituição não é contexto para uma criança viver, é provisório. As casas de acolhimento, às vezes, são centrifugadores patológicos", diz Rui Godinho.
Plano de Intervenção Individual
Em 2019, o legislador veio determinar que todas as crianças em acolhimento disponham de um Plano de Intervenção Individual. Acabando, considera Maria Barbosa Ducharne, por "exigir-se maior rigor nas práticas", com "avaliação das necessidades e definição de objetivos de trabalho". Fazendo com que haja "uma maior consciência dos profissionais de que há certos procedimentos que têm de ser seguidos, fazendo com que seja mais fácil identificar mais crianças com necessidade de acompanhamento psicológico", considera a investigadora.
Complexidade social
"Há 22 anos, quando a lei foi criada, as crianças em perigo vinham de contextos de carência económica", recorda Rui Godinho. Para explicar que a "complexidade social aumentou significativamente". Segundo o diretor da SCML, em Lisboa, "30% das crianças com medidas de proteção do tribunal são de violência doméstica".
Caminho à desinstitucionalização
Em 2021, 3,5% das crianças estavam em acolhimento familiar. Para Rui Godinho, "temos os recursos mal posicionados, com excesso de casas de acolhimento". Tanto que "se desinstitucionalizarmos, libertamos recursos para as respostas terapêuticas". Recordando a Irlanda, que em dez anos passou de 95% para 5% as crianças em acolhimento residencial, apostando nas famílias.