O Tribunal Constitucional (TC) vetou, esta segunda-feira, o diploma da eutanásia, considerando-o inconstitucional. João Caupers, presidente do tribunal, argumentou que o texto gera uma "intolerável indefinição" sobre se o grau de sofrimento para se recorrer à morte medicamente assistida é "cumulativo" - isto é, físico, psicológico e espiritual - ou se basta que exista uma destas dimensões. Com este desfecho, o presidente da República terá agora de vetar o diploma e devolvê-lo ao Parlamento.
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A questão da eutanásia, que se arrasta desde 2016, vai voltar ao Parlamento. O Tribunal Constitucional (TC) vetou o diploma, por uma maioria de sete contra seis, por entender que este gera uma "intolerável indefinição". Segundo o tribunal, o texto não é claro sobre se o grau de sofrimento para se recorrer à morte medicamente assistida tem de ser "cumulativo" - isto é, físico, psicológico e espiritual - ou se basta que exista uma destas dimensões. Os partidos que aprovaram o texto irão revê-lo: o PS diz que é uma questão de "semântica", fácil de resolver. PSD e Chega voltam a pedir referendo.
O presidente do TC, João Caupers, justificou a decisão: "Tendo o legislador [Parlamento] decidido caracterizar a tipologia de sofrimento através da enumeração de três características - físico, psicológico e espiritual - ligadas pela conjunção "e", são plausíveis e sustentáveis duas interpretações antagónicas".
Assim, prosseguiu João Caupers, o Parlamento "fez nascer a dúvida": ou a exigência relativamente aos vários graus de sofrimento é "cumulativa" ou é "alternativa". Caso seja cumulativa (os partidos disseram que sim), a eutanásia só poderá aplicar-se quando haja, simultaneamente, sofrimento físico, psicológico e espiritual; se fosse alternativa, bastaria que houvesse um desses tipos de sofrimento. Neste segundo cenário, a possibilidade da eutanásia iria alargar-se a todos os que "sofram intensamente, seja qual for a tipologia do sofrimento", explicou o presidente do TC.
PSD quer referendo
A título de exemplo, João Caupers expôs um caso concreto: "está em causa saber" se só os doentes com cancro ou com pouco tempo de vida terão acesso à eutanásia ou se, pelo contrário, esta se estenderá a um doente com esclerose lateral amiotrófica "que não tenha um sofrimento físico".
Embora tenha reconhecido que os deputados autores do diploma fizeram "esforços" de "densificação e clarificação de alguns conceitos" - como o TC tinha pedido em 2021, na fiscalização anterior -, João Caupers frisou que o Parlamento "optou por ir mais além". Uma opção que "teve consequências", frisou.
Apesar do chumbo, Caupers deu a entender - como já tinha feito na apreciação anterior - que o TC não é necessariamente contra a eutanásia: citou uma frase do último acórdão, que frisava que "o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância". Contudo, também recordou que só poderá haver eutanásia em condições "claras, antecipáveis ou controláveis".
O diploma tinha sido aprovado por PS, IL, BE, PAN e Livre, partidos que consideram que as dúvidas do tribunal são de fácil resolução. Isabel Moreira, do PS, disse mesmo que bastará "corrigir uma palavra".
"Para nós, "e" significa "e" e não "ou"", referiu a deputada, garantindo que a lei propõe que só haja eutanásia caso os sofrimentos físico, psicológico e espiritual existam em simultâneo. "Mas cá estaremos para dissipar qualquer dúvida", frisou.
Cotrim Figueiredo, da IL, também defendeu que existe apenas um "problema de redação", com José Manuel Pureza, do BE, a concordar que se trata de uma "pequena questão". PAN e Livre pediram uma resolução rápida do impasse.
Nos partidos que votaram contra a lei, Luís Montenegro, líder do PSD, voltou a insistir na proposta de referendo, lamentando que ela só possa ocorrer em setembro. O Chega também defendeu um referendo e o PCP pediu uma maior reflexão. Este foi o terceiro decreto aprovado pelo Parlamento para despenalizar a eutanásia, após dois vetos do presidente da República. Dada a maioria absoluta do PS, o Parlamento deverá ter condições para fazer aprovar novos textos até, pelo menos, 2026.
Três ideias do acórdão
Sofrimento intenso
O TC considerou inconstitucional a norma constante da alínea f) do artigo 2.º . Esta define "sofrimento de grande intensidade" como "o sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa".
Papel dos médicos
O tribunal também votou pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 5.º, 6.º e 7.º. O primeiro deles é referente ao "parecer do médico orientador", o segundo regula a "confirmação por médico especialista" e o terceiro diz respeito à "confirmação por médico especialista em psiquiatria".
Código Penal
O TC considerou inconstitucionais as normas do artigo 28.º, na parte em que altera os artigos que regulam o "homicídio a pedido da vítima", o "incitamento ou ajuda ao suicídio" e a "propaganda ao suicídio". Por outro lado, as definições de "doença grave e incurável" e de "lesão definitiva de gravidade extrema", que tinham suscitado dúvidas a Marcelo, não foram consideradas inconstitucionais.
Reações
Juiz aponta solução
O juiz desembargador jubilado Eurico Reis saúda o facto de o TC não considerar a eutanásia inconstitucional. Ao JN, diz não existir problema em que haja conceitos indeterminados nesta lei - em 2021, esse tinha sido um dos motivos para o veto -, lembrando que a lei prevê que tal seja feito pela Comissão de Verificação e Avaliação de procedimentos clínicos. "Lamentavelmente, confirmou-se a previsão que fiz quando a Lei da Eutanásia foi aprovada, ou seja, que a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional iria encontrar um qualquer pretexto para declarar inconstitucional alguma das normas do diploma em causa. Já na Roma Antiga se considerava que, sendo necessária a existência de 'guardas que ninguém guarda', havia que ter muito cuidado na escolha dessas pessoas. Agora, mesmo que a decisão tenha sido tomada por uma curta maioria, há, portanto, que obedecer a estes guardas que ninguém guarda e proceder em conformidade com o neste momento decretado", disse.
Igreja aplaude
A Conferência Episcopal Portuguesa diz que a decisão "vai ao encontro do posicionamento" da Igreja Católica.
Pedidos de referendo
Para Isilda Pegado, da Federação Portuguesa pela Vida, o novo veto prova que esta questão só pode ser resolvida em referendo. "Para um ato mau não há uma lei boa", referiu.
Momentos-chave
20.02.20 | Primeira aprovação
Cinco projetos de lei que despenalizam a eutanásia (do BE, PAN, PS, PEV e IL) foram aprovados, pela primeira vez, na generalidade.
15.03.21 | Primeiro chumbo do Constitucional
O Tribunal Constitucional "chumbou" a eutanásia, por considerar "excessivamente indeterminado" o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema .
29.11.21 | Veto de Marcelo
O presidente da República vetou a eutanásia por se referir à eutanásia como sendo aplicável em "doença grave" e em "doença fatal".