Cirurgia inovadora realizada na América pode mudar paradigma da transplantação de órgãos entre espécies. Especialistas pedem cautela e reforçam que ética deve ser assegurada.
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2022 começou com uma novidade no mundo científico. Após a autorização dada pelo regulador norte-americano, a 31 de dezembro, uma equipa da Universidade Maryland avançou para o transplante de um coração de porco geneticamente modificado. O recetor foi David Bennett, de 57 anos, que três dias após a cirurgia, está a recuperar bem. Ainda que ladeado por muita vigilância nos cuidados intensivos.
A cirurgia inovadora, tida como a primeira do género entre o animal e um humano - o transplante de um coração inteiro -, está a criar burburinho na comunidade científica já que poderá resolver um problema de fundo em muitos países, a falta de dadores e de órgãos disponíveis para quem deles necessita. No entanto, há outras questões em cima da mesa.
Suprir falta de órgãos
"Tenho muitas dúvidas", explica Manuel Antunes, professor catedrático da Universidade de Coimbra e cirurgião cardiotorácico. As reticências prendem-se com o conceito de "geneticamente modificado".
No caso de David Bennett, o coração que recebeu teve a alteração de dez genes: foram eliminados três genes relacionados com a rejeição de órgãos, seis genes humanos foram acrescentados no genoma do porco e foi retirado um gene do animal para evitar o crescimento excessivo de tecido.
Para o médico, é "controverso misturar material genético" entre humanos e animais, salientando que casos deste tipo podem "levantar questões ´éticas muito profundas".
Já José Fragata, diretor do serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, afirma que, a comprovar-se o sucesso da operação, "tomados os devidos cuidados e na ausência de sofrimento animal", "facilmente será aceite que se preparem animais de forma científica, para poder suprir faltas de órgãos humanos".
O cirurgião salienta que a operação pode representar "um virar de página" para os doentes cardíacos. "Pode vir a mudar o paradigma, temos em Portugal e no Mundo muito mais pessoas à espera de um coração do que dadores adequados para transplantar", explica.
"Um tiro no escuro"
Para David Bennett, que estava em fase terminal, já hospitalizado e acamado, a operação representou a última réstia de esperança. "Era um caso em que morria ou fazia este transplante. Eu quero viver. Sei que é um tiro no escuro, mas é a minha última escolha", disse o homem de 57 anos, citado no comunicado da Universidade de Maryland.>
Ambos os especialistas ouvidos pelo JN reconhecem a inovação mas, tal como a equipa médica que operou Bennett, pedem cautela na hora de afirmar com certeza que o norte-americano irá sobreviver. "Provavelmente seriam precisos três anos para ter resultados palpáveis", defende Manuel Antunes, admitindo que no futuro será a tecnologia [coração artificial] "que vai dar mais resultados", diz.
Medicamentos
Além do transplante, David Bennett está a tomar medicação para impedir que o corpo rejeite o novo órgão. Um dos fármacos é experimental.
Doença grave
O homem de 57 anos tinha uma doença cardíaca grave, "uma arritmia potencialmente fatal". Estava internado há um mês e ligado a um dispositivo ECMO.
Não era elegível
O norte-americano consentiu que fosse feita a operação, mesmo ciente dos riscos. Bennett não estava elegível para um transplante tradicional devido à sua arritmia.
Empresa
O coração do porco foi fornecido pela empresa norte-americana Revivicor, especializada em medicina regenerativa.
Rins
Em outubro, uma mulher em morte cerebral recebeu um transplante de rim de porco geneticamente modificado. Os médicos observaram os resultados durante 54 horas.
Coração de babuíno
Nos anos 80, uma bebé da Califórnia, conhecida como "Baby Fae", com uma doença cardíaca grave recebeu o coração de um babuíno. Sobreviveu durante um mês.