Cresceu na Sibéria, trabalhou com o ídolo de sempre, foi obrigado a escapar de um conflito militar que sempre contestou e lhe custou desavenças com o pai. Foi acolhido por colegas, que hoje são família.
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Faltavam poucos dias para o início da 86.ª Volta a Portugal em bicicleta quando, num treino, Artem Nych sofreu uma queda violenta que lhe causou escoriações em ambos os braços e pernas. O cenário não ficou bonito, as feridas eram pele aberta, causavam dor forte e levantavam dúvidas inevitáveis. "E agora? Queres mesmo correr a Volta, consegues? Respondeu imediatamente que sim e que seria para ganhar", conta Ruben Pereira, diretor desportivo da equipa Anicolor-Tien21 e grande responsável pela chegada de Nych ao pelotão nacional. O resultado foi o que se sabe. No passado domingo, o ciclista russo, que escapou à guerra na Ucrânia, venceu a prova pelo segundo ano consecutivo.
"Foi simples. Tive sempre tudo controlado ao longo de todas as etapas", resume Artem Nych à NM, quase desconcertante. A única exceção foi um pequeno episódio ocorrido na penúltima tirada, a última em linha, que lhe ia custando todo o trabalho de uma época. "Parei para urinar e quando tentava regressar ao pelotão uma equipa atacou e fiquei para trás. Demorei a recuperar, pensei que não ia conseguir, mas felizmente acabou tudo por correr bem", descreve o ciclista num português perfeito, sorriso tímido em rosto de quem parece cumprir com naturalidade o que lhe está destinado. Do alto daqueles 1,95 metros, um corpo magro de 76 quilos, todo ele feito de músculo seco forte. "É impressionante como o rosto dele nunca se altera. Demonstra uma frieza competitiva impressionante", considera Ruben Pereira. Mesmo quando as coisas lhe correm mal, não dá a entender o desgosto. "Pede para ficar um pouco sozinho, apenas isso. Depois, olha em frente e diz que o dia seguinte será melhor", continua o diretor desportivo.
O gelo competitivo é quase tão cortante como os 20 e 30 graus negativos que tinha de encarar nos invernos passados na Sibéria. Nasceu na cidade de Kemerovo, meio milhão de habitantes que têm na indústria e nas minas locais a principal saída de emprego. Artem Nych cresceu na aldeia próxima de Pioner, onde passava os intervalos da escola a jogar futebol e a brincar com os amigos. O pai, funcionário de uma empresa de extração de petróleo, passava temporadas de três meses longe de casa, onde o trabalho chamava. O lar ficava à responsabilidade da mãe, que trabalhava num supermercado e tomava conta de Artem e da irmã.
Foi quando regressou a Kemerovo para fazer o Ensino Secundário que o ciclismo apareceu de forma casual. "Um professor anunciou que estava a ser formada uma equipa e perguntou quem queria participar. Fui e nunca mais larguei as bicicletas", rebobina Artem. "De início, não me passava pela cabeça seguir a via profissional, as coisas foram acontecendo", reconhece. Deu nas vistas e, depois de uma temporada na equipa profissional Russian Helicopters, chegou o convite da RusVelo e logo a seguir, em 2016, da Gazprom, formação financiada pela homónima empresa estatal russa de gás natural, que rapidamente chegou ao topo do ciclismo mundial. "Foi um sonho, não apenas por ter chegado a uma grande formação, mas também porque pude trabalhar com o meu ídolo no ciclismo, Denis Menchov, que era o diretor desportivo." Ganhou estatuto e sagrou-se duas vezes campeão russo, em 2015 (como sub-23) e em 2021, além de outros resultados meritórios, nomeadamente em competições internacionais.
Até que chegou a invasão militar russa da Ucrânia, em fevereiro de 2022, e tudo mudou. Desde sempre contra a guerra, Artem Nych deixou claro à família que recusaria integrar o Exército caso fosse convocado, o que abriu uma ferida com o pai, admirador de Vladimir Putin, que não imaginava o filho a negar um desafio colocado em nome da pátria. As pontas quebraram, a zanga entre ambos deu-se, Artem fugiu do país. É o único assunto a que se recusa abordar na primeira pessoa. Baixa a cabeça, pede desculpa por não falar. Prefere deixar por descrever aqueles dias longos em que, de mochila às costas, atravessou a fronteira para o Cazaquistão, daí voou para a Bielorrússia e depois para a Turquia. Parou em Portugal quando Ruben Pereira soube da sua situação e o resgatou para a vida, para o profissionalismo e para a dignidade. "O Artem é família", sublinha. Aprendeu a falar português sozinho, passa os natais com colegas de equipa, tem neles o suporte que lhe devolveu os dias felizes. Até já se tornou admirador de uma boa francesinha. Só não pode regressar à Rússia, sob pena de ser detido e enviado à força para a frente de combate, a única nódoa que lhe corrói a alma e o mantém afastado da mãe e da irmã, como admite sem precisar de o dizer.
Artem Nych
Cargo: Ciclista profissional, vencedor da Volta a Portugal 2025
Nascimento: 21/03/1995 (30 anos)
Nacionalidade: Russa (Kemerovo)
