Tendência, ligada ao coaching e à espiritualidade, é recorrente em vídeos partilhados nas redes sociais. Mas falta evidência científica. E a que há não é encorajadora.
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Uns minutos no TikTok bastam para encontrar um sem-fim de vídeos em que se elogiam as maravilhas da "manifestação" e se partilham dicas várias para otimizar resultados. Desde a "técnica dos 17 segundos", que consiste em repetir um dado objetivo durante esse tempo, ao longo de 15 dias, à "carta ao universo", em que se imagina que se está no futuro, que já se alcançou a meta desejada e se escreve uma carta a agradecer todos os propósitos cumpridos (mesmo que nada se tenha cumprido ainda). Em vários vídeos, dizem-se coisas como: "Juro que essa é a única técnica de que precisa para alcançar os seus objetivos". Mas, afinal, o que é isto da manifestação? O significado mais conhecido diz respeito ao ato coletivo de expressão pública de opiniões, sentimentos ou reivindicações, geralmente através de reuniões, marchas ou protestos. Mas não é disso que se trata neste texto. A manifestação, neste contexto, é o conceito de visualizar e acreditar com convicção naquilo que se quer, como se já fosse real, para que isso se concretize.
A ideia não é nova. Na verdade, já o livro "O Segredo", de Rhonda Byrne (foi lançado em 2006 e já terão sido vendidos cerca de 34 milhões de exemplares em todo o Mundo), versava sobre este conceito, na altura muito ligado à chamada "lei da atração", com uma aura de autoajuda mística. Com o tempo, e o advento das redes sociais, o Instagram e o TikTok vieram dar-lhe novo fôlego, acrescentando-lhe um lado pop e superficial. Hashtags como "manifestation" (manifestação) ou "LuckyGirlSindrome" (síndrome da rapariga com sorte) generalizaram-se, multiplicaram-se frases como "acordei e decidi que sou a versão milionária de mim mesma", manifestar-se tornou-se, em muitos casos, um estilo de vida, abrindo caminho a uma espécie de espiritualidade de consumo rápido. E não, as redes sociais não são o único meio em que o termo é usado com frequência. Também no coaching a manifestação é encarada como uma ferramenta interessante.
Será mesmo? A resposta não é linear e sucedem-se os alertas quanto aos riscos. Antes disso, vamos às potenciais vantagens. "Pode ser importante, porque muitas vezes temos de nos focar em certos aspetos da nossa vida e há passos que temos de dar nesse sentido", reconhece Sofia Câmara, psicóloga clínica. "É bom termos esta capacidade de visualizar e agir de acordo com isso. E é importante acreditarmos em nós, até porque isso vai permitir-nos lutar contra certas crenças limitadoras. Além disso, ajuda-nos a pensar no que teremos de fazer para o conseguirmos." Bruno Peixoto, neuropsicólogo e diretor do departamento de Ciências Sociais e do Comportamento do Instituto Universitário de Ciências da Saúde - CESPU, é mais contido. "Um ponto positivo, baseado em neurociência, é que de facto pensar positivamente ativa circuitos cerebrais ligados à recompensa", refere.
Já Dália Ratão, hipnoterapeuta e coach, confessa-se fã desta técnica, ainda que só recentemente tenha conhecido o termo manifestação. "Habitualmente chamo-lhe cocriação. Porque estamos a criar uma realidade que ainda não existe. Existe apenas no nosso interior. E também se liga ao "vision board", que encaixa neste conceito. No fundo, é um quadro que está afixado na parede e onde se escrevem os objetivos que se pretende atingir daqui a um ano, por exemplo." E quanto às vantagens? Dália aponta uma série delas. "Ajuda-nos a determinar o nosso sonho, a visualizar, a ganhar um propósito de vida, a aumentar o foco nos nossos objetivos e a confiança em nós próprios, a estruturar pensamentos, a dissociarmo-nos de ideias negativas. Mas não é simplesmente pensar que se gostava de ter algo: é determinar um objetivo específico e definir os passos que é preciso dar nesse sentido."
"Soluções mágicas"
A premissa conduz-nos a um eventual perigo, frequentemente apontado. Dália explica: "Pode haver um risco inerente em determinadas circunstâncias, se a pessoa se ficar pelo desejar. Isto é, se acharmos que basta pensarmos e manifestarmos um dado objetivo e isso vai acontecer. Claro que não basta querer. Tem de haver uma ação, tem de haver um planeamento. Não é algo que acontece por magia. E quando se cai no erro de pensar assim, pode haver frustração, ansiedade, comparação com o outro. "Vi alguém nas redes que diz que manifestou e conseguiu e comigo não foi assim." Sobretudo quando já se trata de alguém que tem crenças inferiores, isto pode levar a que o sentimento de fracasso se aprofunde e enraíze." A hipnoterapeuta vinca ainda uma ideia que lhe parece relevante: "O verdadeiro poder da manifestação não está lá fora, está dentro de nós. Tudo começa de dentro para fora."
Sofia Câmara admite que o tema lhe inspira preocupações várias. Desde logo, por ser abordado nas redes sociais de forma "muito superficial". "A meu ver, há o risco claro de as pessoas se iludirem, de acharem que é um pensamento mágico: "Eu acredito, portanto vai acontecer." Não funciona assim. Há sempre características que é preciso trabalhar. E se essas características não são trabalhadas porque se acredita que simplesmente por se manifestar vai acontecer, isso vai resultar invariavelmente em sentimentos de grande frustração e culpabilidade, o que pode ser particularmente preocupante no caso de pessoas que já têm a autoestima diminuída. Ainda por cima, pessoas que acreditam pouco em si próprias são as que mais tendem a acreditar em soluções mágicas."
A psicóloga vê ainda um outro risco. "Para se atingir uma dada meta, é sempre preciso superar um número considerável de obstáculos, o erro e a falha são uma parte importantíssima do crescimento. O meu receio é que este tipo de filosofia não permita valorizar e incorporar as partes negativas como parte do processo de crescimento. Além de que atingir um dado objetivo não me parece concretizável se não tivermos a curiosidade de nos conhecermos em profundidade. O autoconhecimento é fundamental para percebermos o que nos está a bloquear." Em suma: o conceito de manifestar, da forma como ele é invocado nas redes sociais, por exemplo, parece-lhe "simplista e redutor". "Há diversos aspetos nas entrelinhas que devem ser olhados, para que se possa abordar um dado objetivo de forma mais profunda e consistente."
Bruno Peixoto, docente da CESPU, é ainda mais crítico. "O conceito não é novo, mas esta abordagem parece-me particularmente perigosa, porque volta e meia se tenta dar-lhe uma roupagem científica, que na verdade não existe. Tem sido comum, por exemplo, falar-se da questão da neuroplasticidade, que no fundo é a capacidade que o cérebro tem de reconfigurar ligações em função do que fazemos. E o que vejo dizer por aí é que se eu desejar, se manifestar objetivos e os visualizar, isso vai modificar a arquitetura cerebral, de forma a estar mais apto a acolher os meus objetivos. Mas não funciona assim. O que a neurociência mostra é que para resolver algo de forma eficaz, temos de passar à ação e tem de haver um envolvimento com a realidade. Vai ser através desse contacto e dessa interação que se vão estabelecer ciclos de feedback, para ajustar a minha ação. A construção da minha noção de autoeficácia depende do que penso, sim, mas também das experiências que tenho. O feedback dado pela realidade é fundamental para a resolução de problemas de forma adaptativa."
Mas há mais (riscos, entenda-se). Desde logo, o facto de "estas supostas técnicas de coaching serem aplicadas por indivíduos que não têm formação para avaliar personalidade e dificuldades de âmbito psicológico" e não levarem em conta as características de cada um, que por sinal vão influenciar de forma decisiva a forma como se lida com os objetivos, com o risco, com a confiança, com a frustração. "Pessoas com baixos níveis de autoestima têm maior tendência à culpabilização, o que faz com que o fracasso na manifestação possa ser vivido como culpa e falha pessoal. Parece-me uma receita vendida sem ter em conta vulnerabilidades individuais, desde logo pessoas com traços mais ansiosos ou depressivos."
O docente mostra-se ainda preocupado com a possibilidade de poder haver uma "dissonância cognitiva e emocional", quando "o que se projeta não está de acordo com o sistema de crenças do indivíduo", e de o conceito poder reforçar um certo otimismo irrealista. Bruno Peixoto partilha, aliás, um estudo publicado este ano no "Personality and Social Psychology Bulletin", intitulado ""The Secret" to Success? The Psychology of Belief in Manifestation", que concluiu que a crença na manifestação não está correlacionada com sucesso real e que a crença extrema na manifestação pode levar à "negação da realidade, culpabilização e decisões prejudiciais, especialmente em saúde, finanças ou carreira". "Diria que é algo muito perigoso na sua base, desde logo porque carece de evidência científica", resume.