O dia a dia, o trabalho invisível e as condições dos deputados da nação
Na visão de uma parte dos cidadãos, a existência dos “representantes do povo” cinge-se aos parcos minutos de intervenção no Plenário, a um ou outro projeto de lei, a uma comissão de inquérito que dá que falar. Mas, por trás dos holofotes e das polémicas, há um trabalho de bastidores exaustivo.
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Arrancou, na última terça-feira, a XVII Legislatura, “uma das mais exigentes da nossa democracia”, nas palavras do social-democrata José Pedro Aguiar-Branco, que à primeira hora foi reeleito presidente da Assembleia da República (AR) e prometeu manter a postura que definiu o anterior mandato. Já os candidatos do Chega a vice-presidente e vice-secretário do Parlamento (respetivamente, Diogo Pacheco de Amorim e Filipe Melo) foram chumbados. Quanto a Pedro Nuno Santos, que se demitiu de secretário-geral do Partido Socialista na ressaca do resultado catastrófico das eleições de 18 de maio, saltou da primeira para a última fila da Assembleia. A exigência invocada por Aguiar-Branco resulta, em grande medida, da especial diversidade partidária que marca a nova legislatura, com um total de dez partidos representados (só em 2019 o número de forças partidárias no hemiciclo tinha sido tão elevado). Resulta também do crescimento do Chega nas urnas, partido formado em abril de 2019, que, ao cabo de seis anos, relegou o PS para o último lugar do pódio – em número de deputados – e se assumiu como segunda força política nacional. À boleia disso, e do crescimento da Aliança Democrática, a Direita (PSD, CDS-PP, IL e Chega) tem agora uma maioria de dois terços no Parlamento, que abre um manancial de possibilidades, com uma hipotética revisão constitucional à cabeça.
Entre os 230 parlamentares que tomaram posse, 44 são estreantes. Outros têm já vasta experiência nestas andanças. É o caso de Emídio Guerreiro, social-democrata que foi eleito deputado pela primeira vez há 20 anos, e ainda mais de Edite Estrela, socialista que se estreou na Assembleia da República em 1988 (nos dois casos, a “estadia” no Parlamento não foi contínua, face ao exercício de outros cargos políticos). Ambos aceitaram falar à “Noticias Magazine” sobre o dia a dia e o trabalho dos deputados, que vai muito além das mediáticas intervenções no Plenário. “Costuma dizer-se que o que não aparece nas televisões não existe”, assinala Edite Estrela, numa crítica à cobertura mediática que é dada ao trabalho parlamentar. “No dia da estreia, importa mostrar tudo. Depois, o que tem visibilidade é o que se passa no Plenário. Ou as polémicas. E isso é uma ínfima parte da questão, é apenas o culminar de um trabalho rigoroso feito nos grupos parlamentares e nas comissões. Sendo que muitas vezes o trabalho das comissões só adquire visibilidade se se pressentir que possa haver alguma polémica ou discussão acalorada.” Emídio Guerreiro também aponta o dedo a uma certa ideia ilusória que acaba por passar para o comum dos cidadãos. “Uma intervenção mais estruturada no Plenário implica sempre uma preparação, uma discussão entre os colegas do grupo parlamentar. Muitas vezes, por trás de três minutos de intervenção, estão muitas horas de preparação.”
Para lá das reuniões do Plenário e da Comissão Permanente – que reúne quando a AR não está em funcionamento – há uma série de outros trabalhos parlamentares. Desde logo, aquele que é feito ao nível das comissões, que funcionam durante toda a legislatura e que têm como principais funções o tratamento e a aprovação do processo legislativo e a fiscalização do Governo e da Administração Pública. Atualmente, há 14 comissões parlamentares permanentes, dos Assuntos Constitucionais aos Negócios Estrangeiros, da Defesa ao Orçamento, da Educação à Saúde, do Ambiente à Justiça. Além de várias subcomissões. A composição das comissões parlamentares deve respeitar a proporcionalidade dos grupos parlamentares na Assembleia: ou seja, os partidos com mais deputados têm direito a mais lugares nas comissões. O mesmo princípio se aplica em relação às presidências das mesmas. Para Edite Estrela, é em sede de comissão que se realiza uma das partes mais nevrálgicas da missão parlamentar. “É um trabalho muito interessante, até porque acaba por ser mais fácil chegar-se aos consensos. Regra geral, o diálogo fica facilitado quando não se processa sob os holofotes.”
Além do trabalho nas comissões e subcomissões, há também as reuniões da Conferência de Líderes (em que os líderes dos partidos ou grupos parlamentares se juntam para discutir questões importantes relacionadas com o funcionamento do Parlamento) e da Conferência de Presidentes das Comissões Parlamentares, as reuniões de grupos de trabalho criados no âmbito dos órgãos anteriores, as reuniões da mesa e coordenadores das comissões parlamentares e ainda as reuniões dos vários grupos parlamentares. Um fartote. “Muitas vezes temos reuniões preparatórias das comissões [porque é preciso chegar a um consenso nos vários temas, dentro do próprio grupo parlamentar], temos as reuniões das comissões e depois reuniões de avaliação, novamente dentro do grupo parlamentar, porque muitas vezes não conseguimos levar a proposta até ao fim e temos de incorporar contributos de outros grupos parlamentares”, explica Emídio Guerreiro.
Edite Estrela esboça o calendário habitual. “Por norma, temos reuniões das comissões às terças e quartas, reuniões dos grupos parlamentares às quintas, Plenário à quarta à tarde, à quinta à tarde e à sexta de manhã, sendo que não pode haver reuniões de comissões enquanto está a decorrer o Plenário. À segunda-feira, é suposto os deputados estarem nos seus círculos eleitorais, em contacto com os eleitores.” Além das comissões parlamentares de inquérito, que muitas vezes, por falta de alternativa, se prolongam pela noite dentro. E de outros compromissos inerentes à vida parlamentar, como idas a escolas, associações, entre outras.
“Razões menos nobres”
Uma agenda carregada e “imprevisível”. Muitas vezes, com os dias totalmente preenchidos com reuniões, a alternativa é fazer serão ou levar trabalho para casa, para se preparar as reuniões do dia seguinte. A ginástica é particularmente exigente no caso dos grupos parlamentares mais pequenos, assume Emídio Guerreiro. “Um único deputado tem de se desdobrar por várias comissões e por vezes a única hipótese é um assessor ir à reunião da comissão tirar notas, para as transmitir ao deputado, porque não é de todo possível que esteja presente em todas. Além de que pode calhar ser deputado relator em mais do que uma comissão e o prazo de entrega coincidir. Por vezes, falo com colegas que comentam que têm quatro relatórios para entregar, num curto espaço de tempo.” Este ponto cruza-se com um outro, frequentemente abordado numa lógica demagógica e populista: o das remunerações mensais de deputados.
Vamos aos números. O vencimento mensal ilíquido de um deputado é de 4185 euros, a que acrescem despesas de representação, no caso de o cargo ser exercido em regime de exclusividade. As despesas de representação começam nos 418,51 euros para um deputado e vão aumentando consoante o cargo, podendo superar os 2700 euros no caso do presidente da Assembleia da República – cujo vencimento ilíquido ronda os 6700 euros [ver infografia]. A estes valores, somam-se os abonos do tipo geral, que incluem ajudas de custo diárias (variam consoante a residência do deputado e estão dependentes do comprovativo de participação na atividade parlamentar diária) e despesas de transporte, entre outros. Há ainda abonos decorrentes de atividade parlamentar específica, como missões parlamentares ao estrangeiro. Em 2023, por exemplo, foram pagos 29 mil euros de ajudas de custo a cada deputado, uma média de 2400 euros por mês.
Sem surpresa, o tema tem sido pretensa arma de arremesso do Chega contra o “sistema”. Em novembro do ano passado, quando foi aprovado o fim dos cortes de 5% nos salários dos políticos, que durava desde 2010, deram que falar as tarjas colocadas pelo partido de André Ventura no Parlamento. “Vergonha”, podia ler-se, em letras garrafais, que ladeavam os principais líderes partidários. Vale a pena, contudo, olhar para o panorama mais geral. Se é verdade que os valores apresentados são incomensuravelmente superiores ao de uma parte significativa da população portuguesa – o salário mínimo em Portugal é de 870 euros brutos –, é incontestável que são pouco competitivos quando comparados com os salários praticados em grandes empresas privadas nacionais, em que um gestor de topo facilmente aufere dezenas de milhares de euros por mês. Acresce que o valor é inferior ao praticado em França ou no Reino Unido e fica muito aquém do que ganha um deputado alemão, italiano ou neerlandês.
Patrícia Calca, professora e investigadora do ISCTE, que se debruça sobre o funcionamento das instituições políticas, entende que a narrativa de que “os políticos ganham muito e fazem pouco” é “do mais populista que há”. E explica porquê. “Se queremos ter os melhores representantes, sabemos que vão ser mais caros. Até porque muitos deles facilmente ganham mais noutras funções, sem correrem o risco de terem o seu nome enlameado. Claro que nunca vai ser possível pagar a um deputado o que se paga a um CEO de uma grande empresa. Mas temos de nos lembrar que as decisões legislativas que são tomadas pelos nossos representantes direta ou indiretamente envolvem milhões de euros. Claro que toda a gente ganha mal no país e isso é um problema, vivemos todos com muitas dificuldades, mas será que faz sentido deixarmos estas decisões na mão de pessoas que ganham pouco? Eu sou absolutamente a favor de que os políticos devem ganhar mais e que o seu salário deve refletir o peso da responsabilidade que têm em mãos.” Até porque, se assim não for, há riscos claros, com reflexos na vida de todos nós, alerta a investigadora. “Se os salários não forem atrativos, a política só vai atrair ou quem já lá está há muitos anos, ou os profissionais de segunda linha, que a escolhem por falta de alternativas, e que estão menos interessados num bem-estar comum e mais num bem-estar individual. A lógica que subjaz à política é a de haver a maior pool possível de candidatos, que permita aos cidadãos eleger os melhores dos melhores. Se as condições não forem atrativas, vamos ter uma pool cada vez mais pequena e mais movida por razões menos nobres.”
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Um Parlamento em mudança (para pior)
Se em termos organizativos os deputados mais antigos não notam diferenças substanciais – à parte da evolução tecnológica que, no Parlamento, como fora dele, veio agilizar uma parte do trabalho –, as mudanças no ambiente parlamentar são notórias, sobretudo de há uns anos para cá. “Quando no ano passado, voltei ao Parlamento, fiquei perturbado com o que vi. Houve sempre uma tradição de respeito e educação que agora simplesmente não existe, há uma tensão permanente entre os extremos. Muitas vezes já nem 'senhor deputado' se diz, é arrepiante. Além de, ao contrário do que antes acontecia, agora não tenho interesse em conhecer todos os deputados”, refere Emídio Guerreiro. Edite Estrela tem o mesmo sentimento. “De legislatura para legislatura, tenho notado grandes diferenças, e não são positivas. Vejo atitudes cada vez mais vocais dos deputados do Chega e noto que há determinado tipo de reações extemporâneas que acabam por contaminar outras bancadas, sendo que estou convencida de que na atual legislatura o ambiente ainda se vai degradar mais.” Para Edite Estrela, professora de profissão, há neste campo uma nuance particularmente preocupante. “As galerias estão muitas vezes cheias de miúdos das escolas e os miúdos também se apercebem deste comportamento. O que me vão relatando os professores é que se há uns que manifestam estranheza e se distanciam, há outros que até já usam esse mau exemplo para legitimarem atitudes incorretas que têm. Coisas como: 'Na Assembleia também dizem'. Como professora, como mãe, como avó, esta é uma dimensão que me preocupa muito.”