São sintomas que saltam de consultório em consultório numa busca desesperante por respostas que não chegam. É a dúvida que paira em doenças sem nome. Histórias de quem passa pelo sacrilégio de meses eternos à procura de saber o que tem (ou de que padecem os filhos). A incógnita que consome e corrói tudo à volta.
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Era 11 de março de 2024, a pequena Matilde Norberto nascia prematura no Porto, um ser minúsculo, com 34 semanas e cinco dias. Ruiva, tão ruiva, os olhos da cor do céu. Aconteceu o parto ter sido antes do tempo, a bebé chegar mais cedo aos braços dos pais, nada que previsse o que aí vinha. Ao cabo de quase vinte dias de internamento, teve alta, finalmente em casa. Mas haveria de voltar, mês após mês, dias eternos enfiada no hospital enquanto os pais sobreviviam no lugar cinzento onde moram a ansiedade e as dúvidas. A mãe, Isabel Moreira da Silva, fala com a leveza disfarçada de quem aprendeu a aceitar que a maternidade não foi como sonhara, que a doença lhes invadiu o ninho sem avisar.
“Trouxe a Matilde para casa no final de março, início de abril, e em maio já estava nas urgências. Ela parou de respirar durante a noite, o pai apercebeu-se, voltou ao normal uns segundos depois. Levei-a ao hospital de manhã mais por descargo de consciência.” Foi aí que as análises de rotina indicaram valores alterados, nomeadamente na proteína C reativa (é produzida pelo fígado para ajudar o organismo a combater infeções e inflamações), não se sabia porquê, Matilde ficou internada para estar sob vigilância, uma semana de angústia até ter alta. E seguiu-se um vaivém de aflição.
“A partir daí, todos os meses a Matilde ficava internada em média uma semana. Ela ficava constantemente doente e sempre que a levava ao hospital, por ter aqueles valores alterados, já não vinha embora. De cada vez que me diziam que ela ia ficar, o meu mundo caía.” Isabel desabava em lágrimas, a espelhar o desespero. Testes e mais testes, bacteriológicos, para despistar vírus, tudo negativo, e os indicadores nas análises sempre alterados. A dúvida é um lugar de tormenta. “Ela internada e sem me saberem dizer o que é, é um desgaste”, desabafa a mãe. A dada altura, os pais começaram a organizar-se para serem capazes de gerir o turbilhão dos internamentos, a logística a impor-se à dor. De cada vez que a bebé ia para o hospital, o pai passava as noites ao lado de Matilde e dali seguia para o trabalho. A mãe tomava conta dos dias. Mais tarde, a creche não foi hipótese, os receios agigantaram-se, contrataram uma pessoa para ficar com a pequena em casa, nos dias em que a vida aparentava recuperar normalidade. Mas Matilde voltava sempre ao hospital, num ziguezague que não dava tréguas.
Em dezembro foi internada duas vezes, uma dose repetida num só mês. “De todas as vezes faziam-lhe uma bateria de exames e ficávamos só à espera dos resultados. Como os médicos não sabiam o que fazer, não a queriam mandar embora.” E os pais agarravam-se à esperança, à crença miudinha de que talvez fosse desta que as respostas chegariam. Até que este ano, em fevereiro, chegaram, depois de um teste genético, de uma espera interminável e de um calvário difícil de descrever: “Ela tem uma doença genética rara, que se chama doença granulomatosa crónica”. O que explica o facto de o organismo de Matilde não conseguir combater infeções.
Estão a aprofundar-se os estudos e Isabel, que trabalha na área da saúde, tem aguentado fugir à tentação de pesquisar na Internet, pediu opiniões a colegas, muitas. Anda agora numa luta constante para evitar que Matilde apanhe infeções. “Só que é impossível dizer a uma criança para não pôr as mãos no chão e levá-las depois à boca.” A solução será um transplante de medula, os pais ainda não sabem se são compatíveis, o caminho tortuoso não parece ver fim. Há só uma certeza que mói: “A de que nunca houve um normal para nós, nunca consegui criar uma rotina com a Matilde, de horas de dormir, de comer, todos os meses ela ia para o hospital. Nunca fomos sequer à praia. Vivo numa ansiedade permanente”. Às vezes, os pais lá abafam os receios e vão jantar fora, numa tentativa de normalidade. E a esperança não esmorece.
Há uma história, contada por Carla Martins, mãe de Constança (lá iremos), que ajuda a traduzir o embate que deita por terra todos os planos sonhados para os filhos pelos pais: “Imagine-se que fazemos as malas para ir para as Maldivas de férias e, de repente, aterramos na Holanda, onde está frio e onde afinal teremos de passar o resto da vida”. Há tulipas, moinhos, não é tudo mau, mas é preciso comprar roupa quente, novos guias de viagem, aprender um novo idioma. A metáfora encaixa que nem uma luva e Carla adianta-se a explicar: “É óbvio que idealizei uma filha saudável, é sempre um choque”. Mais ainda quando o diagnóstico não chega.
Cuidar de uma filha sem saber o futuro
Carla e Rui Martins levaram 14 anos – sim, 14 – a chegar a respostas, à paz que acreditavam que teriam, por fim, por terem um nome para a doença com que a filha Constança, que acaba de festejar 15 anos, nascera. Mas recuemos uns anos. O casal já tinha dois filhos rapazes quando Constança chegou, a primeira menina da família. Aos seis meses começaram a surgir os primeiros sinais, a bebé não pegava nos brinquedos, se estivesse deitada não mudava de posição, não adquiria competências.
Um alerta para a pediatra espoletou tudo o resto, consultas de neuropediatria, de genética, testes atrás de testes, um rolo compressor que começa a trabalhar e nunca mais pára. De Castelo Branco, onde moram, foram para hospitais de Coimbra e Lisboa, bateram a todas as portas, “nem que fosse no Algarve”. Ainda chegou a haver um diagnóstico errado em cima da mesa, de síndrome de Rett muito atípico. “Mas nunca houve consenso, estivemos sempre na dúvida, foi sempre uma interrogação”, recorda a mãe. E sim, há a negação, é inevitável, o pensamento de que “até pode não ser nada”. Só que aos três anos Constança ainda não andava, nem falava. “Tivemos de fazer o luto da filha que tínhamos idealizado.” Carla forçou-se a descomplicar, tem a alegria entranhada na voz, não soçobrou perante o cenário. Ela e o marido, ambos enfermeiros, agarraram-se ao possível e, mesmo sem orientação médica, afundados na impotência, desataram a procurar terapias. Navegaram os mares da Internet, leram reportagens sobre doenças raras, sobre crianças que também não caminhavam. Enfiaram a família no carro, uma e outra vez, para levarem Constança à Maia, onde encontraram o protocolo PediaSuit, além de terapia da fala, ocupacional, fisioterapia. Num mês, chegavam a desembolsar cinco mil euros em terapias, nada os travava. E Constança começou a dar os primeiros passos, hoje caminha, ainda que de forma robótica.
“Fomos andando às apalpadelas, sempre às escuras. Já só queríamos que ela adquirisse competências, autonomia. Claro que é muito difícil de lidar, temos mais dois filhos, não queria que se sentissem abandonados também. Unimo-nos muito”, confessa Carla. Anos e anos a lutar, sem nunca baixar os braços, a vida de casal anulada (muitos pais de crianças com doenças raras acabam a divorciar-se), e nada os abalava. Mas continuava a faltar um nome, um diagnóstico, um GPS para saber por que estrada andar. “Várias vezes pedi nas consultas de genética para, por favor, não desistirem de nós.” A cada novo teste, parecia nascer uma centelha de sol no meio das nuvens carregadas. “Será desta? É uma angústia, os resultados demoram uma eternidade, não é uma semana nem um mês, é um ano, e aí sonhamos com tudo, para depois chegarmos lá e nos dizerem que não chegaram a nenhuma conclusão.”
Carla já tinha perdido a esperança, já não esperava nada quando, no ano passado, a notícia de haver diagnóstico lhe deu ânimo. “Uma alteração ao nível do gene Nova2, que terá acontecido na formação intrauterina.” Mas a certeza voltou a enfiar a família na neblina em que viveram até então. Só há 15 casos no Mundo, o paciente mais velho tem agora 16 anos, “o que nem dá perspetiva sobre esperança de vida”. E pouca ou nenhuma informação. “Não há indicação sobre o que fazer, nada. Só sabemos que há características comuns aos vários casos: não falam, há um défice cognitivo grave, dificuldade na marcha, não há autonomia e a fisionomia é normal. Mais nada.” A incógnita continua a pairar, talvez agora mais ainda. “Já só queremos ter uma menina feliz. Por muito ou por pouco tempo, só queremos que seja feliz. E todos os dias, quando me deito, peço para quando eu tiver de partir, que a minha filha parta cinco minutos antes.”
Trinta anos a viver na incerteza
A frase de Carla é impiedosa, um murro no estômago que não dá para adoçar. A incerteza na doença consome os dias de quem é pai e mãe, mas também de quem, já adulto, resiste e não desiste. Carlos Marques, ou melhor, Carlos Besser, o nome artístico que usa na carreira de DJ, sabe bem disso. Mora numa aldeia na Serra da Estrela e entrou há semanas no bloco operatório, na esperança que lhe resta de que as dores que sente desde gaiato o abandonem de vez. Talvez as corridas para a casa de banho, num descontrolo intestinal, vejam finalmente o fim, assim como o desespero de perder peso à velocidade da luz, as cólicas intensas, as dores no peito e as sensações de desmaio. Tem 30 anos, passou toda a vida a sofrer. Chegaram a dizer-lhe que talvez fosse imaginação dele, psicológico, coisa mais da cabeça do que do corpo. Chamaram-lhe ansiedade tantas vezes que lhes perdeu a conta. Não era.
Carlos não tem memória da vida de outra forma, já em miúdo media bem as saídas para acautelar ter casas de banho por perto, a doença era intermitente, ora tinha crises, ora andava bem. “À medida que fui crescendo, foi-se intensificando. Tanto que no Secundário ia parar muitas vezes ao hospital.” Na adolescência, agarrou-se ao sonho de ser DJ de música eletrónica, num exercício de escapismo às dores que o atormentavam, às crises que o deixavam esquálido. Chegou mesmo a atuar num festival de fralda, vestiu umas calças largas e aguentou o que lhe pareciam ser “facadas” no abdómen. “Não morri por causa disso, o que me foi matando aos bocados foi a doença.” A doença que nunca pudera batizar e que lhe mirrava o corpo. Carlos pensou, muitas vezes, ser do que comia, foi testando, tornou-se até vegetariano por uns anos, nada resolveu.
Visitou médicos, repetiu exames, colonoscopias, endoscopias, ecografias sem fim, para nunca se chegar a conclusão nenhuma. Até que, na pandemia, depois de uma tour na Indonésia, viveu a sua maior crise. Num dia, chegava a ir 17 vezes à casa de banho, até a água lhe fazia mal, foi cortando no que comia para evitar a dor, começou a definhar, trinta quilos de peso, era pele e osso, o cabelo a cair, já mal se levantava da cama, a mãe carregava-o para a casa de banho. “Doía-me respirar, doía-me estar deitado, doía-me tudo. Cheguei a dizer à minha mãe que estava grato pelo tempo que tinha tido com ela, numa espécie de despedida.”
Foi depois de mais uma ida às urgências sem respostas, que a mãe, aflita, o convenceu a tentar uma última vez um médico com consultório privado, Carlos estava derrotado pelo cansaço, mas não foi capaz de lhe dizer que não. “Em cinco minutos, o médico disse-me o que ninguém tinha sido capaz de diagnosticar a vida inteira, era giardia, um parasita que se aloja nos intestinos. Este médico foi um anjo da guarda.” O tratamento que se seguiu foi “destrutivo”, pesado, longo. Teve de reaprender a comer, o estômago desabituara-se de tanta caloria, ainda fez fisioterapia, renasceu. Mas as dores acabariam por voltar, “eram no lado direito da barriga, ficava tonto ao ponto de cair, com dificuldades em respirar”. O “anjo da guarda” aconselhou-lhe um hepatologista, seguiram-se mais exames, até se chegar à derradeira conclusão, já este ano: síndrome da artéria mesentérica superior, doença rara que comprime o intestino delgado (na região do duodeno). Carlos foi operado há duas semanas, ainda está a recuperar. “Só queria voltar de vez à vida, o meu foco era chegar aos 30 bem, ter um diagnóstico é um alívio.” A verdade é que celebrou 30 anos a 14 de março e dias depois fez a cirurgia.
A psicóloga Cláudia Vicente resume bem o impacto que o desconhecido, quando se trata de doença, tem na vida: “É sistémico”. E prossegue. “Sofrermos com sintomas e não haver diagnóstico, não percebermos o que temos e ouvirmos durante anos que está tudo bem, que os exames estão bem, tem um impacto não só físico, mas também financeiro, porque não se desiste de bater a todas as portas, e emocional. Chega-se a pensar que é da nossa cabeça, é avassalador. Perde-se a autoconfiança no julgamento, se os médicos dizem que está tudo bem e eu não me sinto bem, então o problema sou eu.”
E a tendência, refere, quando não há diagnóstico nem tratamento, é o agudizar dos sintomas. “O que é muito doloroso, vai-se perdendo qualidade de vida e vai-se continuando a procurar ajuda, muitas vezes em lugares que não são válidos, nomeadamente o ‘doutor’ Google.” Mesmo quando se trata de uma doença grave, aponta a psicóloga, ter um diagnóstico “dá uma sensação de controlo maior”. “Quando não sei o que tenho, abre-se um imaginário. Se é desconhecido, não sei lidar. É um quarto escuro assustador, em que não sei o que está à frente nem como me defendo.” Ainda para mais, quando não há uma validação externa e “estamos sempre a ser postos em causa”.
Foi exatamente essa falta de validação que Sílvia Matos viveu. Chegou a achar que eram normais as dores que sentia, afinal toda a gente lhe dizia que faziam parte de ser mulher. Tem as datas na cabeça, teve a primeira menstruação aos 11 anos e desde os 14 que as dores se tornaram intensas, insuportáveis. “Ao ponto de terem de me levar para o hospital em braços, ficava pálida e desmaiava com as dores. Mas todos os médicos me diziam que não havia nada de anormal, a médica de família dizia-me ‘bem-vinda à idade adulta’”, conta. Atravessou toda a adolescência a acreditar que nada havia a fazer, tinha menstruações longas e abundantes, eram oito dias de sofrimento e, a cada mês, pensava que só tinha de aguentar os cinco dias de dores mais fortes. Os próprios professores começaram a reconhecer a rotina. “Sempre que estava com a menstruação, passava os dias na enfermaria da escola. Eles já me diziam ‘estás com o período’. Houve uma altura em que comecei a faltar às aulas. Tomava cinco comprimidos por dia e nada fazia efeito.”
No hospital, medicavam-na para a dor e Sílvia voltava, invariavelmente, a casa com uma mão cheia de nada. Uma vez encontrou a mesma médica que a havia atendido no mês anterior. “Perguntou-me ‘outra vez aqui?’ E respondi ‘sim, outra vez, e vou continuar a vir enquanto isto acontecer’. Como é que eu desmaiava e eles me diziam que era normal?”, questiona. Hoje, Sílvia consegue equiparar o que sentia todos os meses à dor das contrações de ter um filho. Aos 16 anos, receitaram-lhe a pílula, “aí melhorou ligeiramente, mas pouco”. Ainda tentava olhar à sua volta, a irmã gémea também tinha dores menstruais, “mas nada comparável”. Na escola distinguiam-na da irmã por ser “a das dores”. Pensou que talvez fosse ela que não suportava tão bem a dor. Mas meteu na cabeça que aquilo não podia ser normal, começou a procurar especialistas. E eis que encontrou uma médica que lhe disse que não, não era normal sofrer assim. Fez uma série de exames, o diagnóstico chegou: endometriose. Nunca tinha ouvido falar, a médica explicou-lhe e ainda perdeu horas na Internet a ler.
Depois veio outro choque, disseram-lhe que seria praticamente impossível engravidar, que se quisesse ter filhos devia começar a tentar no imediato. Sílvia tinha apenas 18 anos, já trabalhava, namorava desde miúda com o atual marido, tinham juntado trapinhos em Loures, mas não estava nos planos serem pais tão cedo. “Só que a partir do momento em que existe a possibilidade de não conseguirmos... decidimos começar a tentar.” Largou a pílula, decisão condicionada pela doença, e a jornada foi longa, um suplício de três anos, quis desistir. “Pensei muitas vezes que o meu corpo não servia para fazer bebés.” Foi quando começou a ponderar a hipótese da fertilização in vitro que conseguiram, o teste de gravidez deu positivo, ela acabou num pranto. Aos 22 anos, foi mãe de um menino. Atualmente, com quase 30, é mãe de dois (ainda sofreu um aborto espontâneo pelo meio). Sendo certo que agora há mais informação sobre a doença. “Fala-se muito mais, inclusive figuras públicas, há mais notícias, páginas de Instagram. Ainda assim, muita gente não sabe o que é e sinto que muitos médicos ainda olham para isto como se fosse normal. Esse é o problema, olhar para as dores como normais faz-nos pensar que somos nós que somos fracas.”