Portugal despediu-se de Francisco Pinto Balsemão, o homem que cruzou, como ninguém, um lugar cimeiro na democracia portuguesa com um papel incomparável na Comunicação Social, pela qual se bateu até ao último suspiro. Deixa um legado irrepetível, pintado a liberdade e inovação, e um grupo que procura resistir.
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Em abril de 1970, num país ainda profundamente ditatorial, um jovem deputado à Assembleia Nacional, representante da chamada "Ala Liberal", deixou muito boa gente à beira de um ataque de nervos. Em causa, a apresentação de um projeto de lei de imprensa que, entre outras coisas, previa o fim de qualquer forma de censura e a criação, nos jornais, de conselhos de redação empoderados. A proposta, verdadeira pedrada no charco num país amordaçado pelo lápis azul, estava condenada ao fracasso. Pelo menos, naquele ano. Mas "assustou muita gente". E acabou a servir de semente para o que havia de vir. O jovem deputado era Francisco Pinto Balsemão, que na altura se dividia entre a Assembleia Nacional e o vespertino "Diário Popular", gerido pelo tio. Não se pense, porém, que lá estava para acatar ordens. O referido projeto de lei, que apresentou no Parlamento a meias com Francisco Sá Carneiro, é disso um bom exemplo. Como conta no seu livro "Memórias", publicado em 2021, aquele esboço de lei provocou "a indignação de Brás Medeiros e, por influência deste", do seu tio Xico [ambos administradores do jornal]". E ainda assim, Francisco, o sobrinho, não se coibiu de o fazer. A história é reveladora de uma realidade incontornável: Balsemão esteve sempre na dianteira da luta pela liberdade de informar, quer esta lhe custasse desaguisados familiares, impropérios de amigos próximos ou, a dada altura, reparos constantes ao seu desempenho governativo. Figura fundamental na curta vida da democracia portuguesa, tanto pela defesa férrea de uma Comunicação Social verdadeiramente livre e plural, como pelo papel que desempenhou na política, partiu na última terça-feira, 21, aos 88 anos. Quem com ele privou fala na morte de um senador e no fim de uma era da Imprensa portuguesa.
Porque falar de Francisco Pinto Balsemão é falar do Expresso (e mais tarde da SIC), que fundou em 1973, ainda durante a ditadura, é falar da Lei de Imprensa, para a qual, cinco anos depois da tal primeira tentativa falhada, acabou por dar um importante contributo, é falar de um respeito escrupuloso e invulgar pela liberdade e independência jornalística, mesmo quando era chefe de Governo e o "seu" jornal lhe caía em cima, semana após semana. É também falar do jovem que decidiu ser deputado à Assembleia Nacional, ainda no tempo de Marcello Caetano, por acreditar que era possível mudar o regime por dentro - como o próprio admitiu, enganou-se -, de um dos fundadores do Partido Popular Democrático (PPD), entretanto renomeado Partido Social Democrata (PSD), do primeiro-ministro que foi figura fundamental na revisão Constitucional de 1982, impondo de vez o fim da tutela militar sobre o poder civil.
Francisco Pinto Balsemão durante a cerimónia de tomada de posse como primeiro-ministro, em 15 de janeiro de 1981 (Foto: Getty Images)
À "Notícias Magazine", Luís Marques Mendes, antigo ministro, ex-presidente do PSD e amigo de Balsemão desde os anos 1990, lembra que o então primeiro-ministro foi "o grande arquiteto" dessa revisão que "mudou a natureza da nossa democracia", um "aristocrata da política, com grande espírito de diálogo e convicções fortes, mas com grande respeito pelas opiniões dos outros". "Um verdadeiro senador", resume. O social-democrata recorda o "papel decisivo que [Balsemão] teve na vida do PSD", como fundador, mas não só. "Em momentos capitais, como o da crise das "Opções Inadiáveis", em 1978, ele evitou a implosão do partido. Na altura, metade do grupo parlamentar movimentou-se contra Sá Carneiro e abandonou. Quem evitou uma situação de grande fatalidade foi ele, porque não só tomou a opção de não abandonar, como ficou a criar pontes de entendimento." De resto, o que entre eles começou por ser uma convivência ditada pela coexistência no partido, foi evoluindo para uma relação estreita, de cumplicidade e confiança, tanto a nível pessoal como político. Por isso, em 2005, quando era líder do PSD e teve de indicar uma figura do partido para o Conselho de Estado, Marques Mendes não hesitou em dar o nome de Balsemão - cargo que o fundador do "Expresso" manteve até ao fim dos seus dias. Quando, já este ano, teve de escolher alguém para presidir à comissão política da sua candidatura à presidência da República, voltou a chamá-lo. "E ele aceitou de imediato", garante. O candidato lembra ainda que, todos os domingos, Balsemão recebia em casa um grupo de amigos, para jantarem e assistirem juntos ao comentário do social-democrata no "Jornal da Noite". O grupo tinha até um nome: GAMM - Grupo de Amigos de Marques Mendes.
Quanto à entrada de Balsemão na política, foi, na verdade, motivada pela experiência que teve no jornalismo e, em particular, no "Diário Popular", que lhe valeu várias idas à PIDE. "O confronto quotidiano com os cortes dos censores despertou-me para a luta política, mais do que as muitas histórias já ouvidas sobre o assunto", recordou, no seu livro de memórias. A dada altura, percebeu que "era impossível lutar pela liberdade de informação sem lutar pelas outras liberdades, pela democracia e, portanto, pela mudança de regime". Foi com esta premissa em mente que em 1969 aceitou ser deputado à Assembleia Nacional (mas o objetivo ficou por cumprir). Nesse mesmo ano, fundou o Expresso, sob o lema "O jornal dos que sabem ler". O mote soa redundante, mas encerrava, na verdade, um statement contra o regime - o jornal dos que sabem ler para lá da censura, lia-se nas entrelinhas. E o percurso político foi por aí fora: além de ter sido um dos fundadores do PSD, foi, em vários anos, deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República. Em 1979, Sá Carneiro foi eleito primeiro-ministro e convidou-o para ser Ministro de Estado Ajunto. Ele aceitou. Só que nem dois anos depois, o histórico fundador do PSD perdeu a vida no acidente de Camarate e o dono do "Expresso" foi chamado a assumir a chefia do Governo. A passagem por São Bento não foi um mar de rosas, muito por culpa da oposição interna e da crise económica que assolava o país. Em 1983, face à instabilidade crescente no seio da Aliança Democrática, Ramalho Eanes, então presidente da República, dissolveu a Assembleia e convocou eleições. O PS venceu e Balsemão não voltou aos governos. Mas, com a referida revisão constitucional de 1982, acordada com Mário Soares, o líder socialista que se tornaria um amigo para a vida, venceu uma das suas maiores batalhas: garantir a "libertação da sociedade civil".
"Acima de tudo, jornalista"
Daí em diante, consolidou o seu percurso de empresário dos media. Como o próprio disse a João Vieira Pereira, atual diretor do Expresso, no podcast "Deixar o mundo melhor", da autoria do próprio Balsemão: "A política fez-me ver a vida de outra forma, mas o meu percurso passou, acima de tudo, por ser jornalista." Neste capítulo, é particularmente relevante o contributo que deu para a primeira Lei de Imprensa da democracia, gizada em 1975, e inspirada na tal proposta de lei que Balsemão apresentou cinco anos antes, quando o país ainda agonizava nas malhas da ditadura. Alberto Arons de Carvalho, que viria a ser secretário de Estado da Comunicação Social durante os governos de António Guterres (PS), também integrou a comissão nomeada pelo Governo Provisório para redigir a lei. O professor universitário recorda, em particular, o contributo relevante que o pai da Impresa deu para a criação de um Conselho de Imprensa, a "primeira experiência de regulação da Comunicação Social em Portugal". "Foi fundamental para definir as suas competências e atribuições e para alargar o âmbito da sua atuação", lembra.
Em pouco tempo, Balsemão conduziu o "Expresso" a um lugar cimeiro do jornalismo nacional, marcando pela absoluta liberdade que cultivou dentro da empresa. Prova maior disso é a tal passagem pelo Governo, durante a qual, não raras vezes, viu o seu jornal expor tricas internas do seu Executivo ou dirigir-lhe críticas veementes, muitas vezes por via de análises de Marcelo Rebelo de Sousa, hoje presidente da República e na altura diretor do jornal. Conta quem viu que, aqui e ali, o patrão não gostava do que lia. Nas suas próprias palavras, "o Expresso quis mostrar que podia matar o pai". Mesmo assim, nunca interferiu. Até Joaquim Vieira, diretor-adjunto do jornal entre 1989 e 1993 e autor de uma biografia não autorizada de Balsemão que lhe valeu um processo em tribunal (embora o caso não tenha sequer chegado a julgamento), reitera esta ideia. Apesar de não terem tido uma "relação fácil", o jornalista e autor reconhece que este "não intervinha naquilo que o Expresso publicava". "Eventualmente, a posteriori, podia ficar aborrecido com alguma coisa, mas não era nada para levar a peito, nem havia nenhuma mensagem de alterar a atitude em relação ao que quer que fosse. As pessoas publicavam no "Expresso" aquilo que queriam." Nas dezenas de contactos que fez para a pesquisa do seu livro, encontrou um único jornalista que lhe confidenciou um pedido de Balsemão para não publicar algo sobre a instalação de uma unidade petrolífera, por considerar que "estava em causa o interesse nacional". "Foi a exceção que confirmou a regra, o "Expresso" foi sempre um espaço de liberdade", entende. Joaquim Vieira aponta como exemplo o célebre episódio em que Marcelo Rebelo de Sousa, na altura subdiretor, terá escrito, na secção "Gente" do jornal, a frase "Balsemão é lelé da cuca." "A única coisa que Balsemão fez foi chamá-lo para falarem. Não houve retaliações e Marcelo continuou na direção. É um episódio revelador da margem de tolerância enorme que ele tinha, neste caso até suicida." Por tudo isto, e apesar da relação conturbada que tiveram, Joaquim Vieira não tem dúvidas: partiu "um dos grandes". "Era um senhor, alguém que podia viver de rendimentos e não se meter nestas coisas, mas quis ter iniciativa e inovar até ao fim."
A inovação é outro dos traços distintivos que marca o seu percurso enquanto empresário da Comunicação Social. Depois de em 1973 ter fundado o primeiro semanário de referência em Portugal, Balsemão voltou a agitar o panorama mediático nacional em 1992, com o lançamento da SIC, a primeira televisão privada nacional. E a história de expansão e inovação vai por aí fora, seja com o lançamento de marcas e publicações associadas ao "Expresso", com a aposta num prestigiado segmento de revistas (entretanto vendidas à "Trust in News"), com o lançamento da SIC Internacional (1997), do primeiro canal de notícias em Portugal (Sic Notícias, em 2002) e de vários canais temáticos (SIC Radical, SIC Mulher, SIC K) ou, mais recentemente, com a aposta nos podcasts, área em que fez questão de dar o exemplo - primeiro, por ocasião dos 50 anos do "Expresso", com "Deixar o Mundo Melhor", depois com uma série de episódios ligados à Inteligência Artificial, outra das suas paixões, e, já este ano, com "Memórias", um podcast adaptado do livro homónimo, para o qual a voz de Balsemão foi gerada por IA.
Há, porém, um lado pouco solar nesta história, que se cruza com as dificuldades gritantes do setor. Se nas décadas de 1980 e 1990 a Impresa se destacava na captação de receitas, a faturação do grupo foi caindo (à imagem do que aconteceu com a concorrência), as dívidas foram-se acumulando, as sucessivas crises ajudaram à festa, o grupo vê-se, de alguns anos a esta parte, mergulhado em francas dificuldades. A 27 de setembro, a Impresa confirmou até que o seu acionista maioritário estava em negociações com o grupo italiano MediaForEurope (MFE), controlado pela família do antigo primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi (já falecido), com vista à "aquisição de uma participação relevante" no grupo. Até ao momento, não é conhecido o desfecho desta negociação. Mas quando a esta notícia se junta o adeus de uma figura-chave na história da Imprensa portuguesa, um caso raro de devoção à liberdade de informação, fosse qual fosse o preço a pagar, fica difícil fugir à sensação de que um certo tempo está prestes a terminar. Ideia que, de resto, tem sido admitida pelos que, durante décadas, privaram com ele. Como Henrique Monteiro, jornalista, antigo diretor do "Expresso" e amigo do empresário, que, em declarações à SIC, assumiu: "Para nós, jornalistas, é o fim de uma época. Nós crescemos, vivemos e fomos relevantes como jornalistas graças à liberdade que o Francisco Balsemão conseguiu para nós."

