Especialistas alertam para impacto dos alimentos ultraprocessados no aumento das reações alérgicas. Nem os artigos para bebés até 12 meses escapam.
Corpo do artigo
Ao longo dos últimos anos, vários estudos científicos têm mostrado que as alergias alimentares seguem em crescendo em certas regiões do Mundo. É o caso do estudo inglês “Food anaphylaxis in the United Kingdom: analysis of national data”, publicado em 2020, no “British Medical Journal”, que relata o seguinte: entre 1998 e 2018, as admissões hospitalares motivadas por choque anafilático relacionado com a ingestão alimentar subiram de 1,23 por cada cem mil pessoas (e por ano) para 4,04%. O que se traduz num relevante aumento de 5,7% a cada ano. Dados como estes têm levado cada vez mais médicos e investigadores a debruçarem-se sobre o tema, procurando explicações e formas de mitigar um problema que continua a crescer. É neste contexto que a questão que se segue começa a ganhar força: estará a ingestão de alimentos ultraprocessados – leia-se, os snacks, as bolachas, os pães embalados, as batatas fritas de pacote, as carnes processadas e outros que tais – a contribuir para adensar o problema? Tudo indica que sim.
Vamos por partes. André Moreira, diretor do serviço de Imunoalergologia do Centro Hospitalar Universitário de São João e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, ressalva, antes de mais, que “esta onda epidémica tem velocidades diferentes em diferentes países da Europa”, sendo que “Portugal tem um atraso de alguns anos” em relação a outros países próximos, designadamente “o Reino Unido, os países do Norte da Europa ou mesmo a Espanha”. O clínico estabelece uma comparação sintomática. “No Reino Unido, a cada turma de crianças com dez anos de idade, há, em média, uma com anafilaxia provocada pela ingestão de alimentos. Em Portugal, a melhor evidência que temos resulta do projeto Geração XXI [projeto de investigação da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto – ISPUP, que desde 2005 acompanha uma coort de cerca de 8600 crianças], e a estimativa é de que haja uma criança com manifestações graves de alergia alimentar a cada cinco turmas.” O que não quer dizer que estejamos a salvo. O imunoalergologista frisa isso mesmo: “Há 20 anos, quando comecei a trabalhar nesta área, haver uma criança com anafilaxia provocada pelo amendoim, por exemplo, era uma raridade. Hoje já começamos a ter cada vez mais crianças com alergia alimentar grave. E daqui a cinco anos vamos ter ainda mais.”
Porquê? André Moreira resume. “Há duas hipóteses mais ou menos consensuais que ajudam a explicar este aumento: por um lado, a hipótese da barreira, popularizada por Cezmi Akdis; por outro, a hipótese da biodiversidade, cunhada por Tari Haahtela.” Simplificando, a primeira propõe que o aumento de doenças alérgicas (onde se incluem a rinite alérgica, a asma, o eczema e a alergia alimentar) está ligado à quebra da barreira epitelial – camada protetora que reveste a superfície de órgãos e tecidos e que atua como uma primeira linha de defesa contra agentes externos, como bactérias, vírus, toxinas e alergénios –, que por sua vez é provocada por fatores como a industrialização, a urbanização e os novos estilos de vida. Na prática, ficando a barreira comprometida, os alergénios conseguem atravessar a pele ou o intestino de forma inadequada, ativando o sistema imunitário de forma errada. Já a segunda sugere que a redução da biodiversidade do nosso planeta pode afetar negativamente o sistema imunitário humano, tornando-o mais vulnerável a doenças. No caso da primeira hipótese, o docente universitário destaca o impacto que produtos como pastilhas para a máquina da louça com abrilhantador, pastas de dentes branqueadoras ou até simples detergentes podem ter, frisando que ao contrário do que acontece com a introdução de medicamentos no mercado, em que a regulação é imensa, o licenciamento destes produtos é mais simples, assentando apenas em “estudos de curta duração”.
É também aqui que entram os famosos alimentos ultraprocessados. Inês Pádua, nutricionista e professora do Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU, integra a task force da Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica que tem em mãos o estudo sobre a relação entre os alimentos ultraprocessados e o desenvolvimento de alergias em crianças. O grupo publicou no último ano, na revista “Pediatric Allergy and Immunology”, um estudo de revisão científica sobre o tema, com dados que vale a pena destacar. A saber: a exposição alimentar à frutose, aos refrigerantes e ao açúcar foi associada a um risco aumentado de asma, rinite alérgica e alergias alimentares em crianças; o consumo de alimentos comerciais para bebés foi associado à alergia alimentar na infância; o consumo infantil de frutose, sucos de frutas, bebidas açucaradas, alimentos ultraprocessados ricos em carboidratos, glutamato monossódico e produtos finais glicados avançados (AGEs) foi associado à ocorrência de doenças alérgicas, no geral. Inês Pádua traduz. “Aquilo que de facto percebemos é que há um impacto no sistema imunitário de forma direta, com a diminuição de células de defesa, mas também indireta, porque estes alimentos também têm um impacto negativo no microbioma intestinal. E cada vez mais percebemos que um microbioma em piores condições tem um impacto negativo na nossa imunidade. Acaba por haver uma desregulação ao nível das células que são produzidas no nosso sistema imunitário e ele torna-se muito mais reativo, mais predisposto para uma resposta mais exacerbada e inflamatória.” Um risco que é particularmente vincado no caso das crianças, na medida em que têm uma “maior imaturidade imunitária e gastrointestinal”.
E sim, até os bebés de meses estão expostos a estes riscos. Mónica Rodrigues, nutricionista e investigadora do ISPUP, chama a atenção para as conclusões de um estudo de 2022 (“Commercial baby foods aimed at children up to 36 months: are they a matter of concern?”), realizado em Lisboa, por investigadores portugueses: cerca de 62% dos alimentos para crianças até aos 36 meses encontrados nos supermercados eram ultraprocessados e, destes, 57% estavam indicados para crianças com menos de 12 meses. “São alimentos ricos em açúcar, sal, corantes e intensificadores de sabor”, explica. Ela própria conduziu um estudo ligado ao tema, onde concluiu que as crianças que tinham uma maior adesão à dieta planetária (mais virada para sustentabilidade, com mais alimentos de origem vegetal) tinham menor inflamação das vias aéreas. Por tudo isto, Inês Pádua diz e repete: “É urgente lançar ações que promovam a diminuição do consumo destes alimentos.”