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Poucas pessoas conseguiriam fornecer tantos motivos e tão interessantes para crónicas e reflexões como Simone Biles. Justificar-se-ia pelo menos uma por cada razão que se segue. Pela precisão das suas intervenções públicas, como a frase em que com uma subtileza cirúrgica critica as declarações de Donald Trump sobre os imigrantes e os empregos dos negros. Pela sua genialidade desportiva e a forma como alterou o paradigma sobre a idade na ginástica. Pela história inspiradora de abandono e superação na infância, quando foi adotada pelos avós. Pela coragem de ouvir o corpo e de respeitar a mente, quando em Tóquio todos lhe exigiam mais sucesso e ainda assim assumiu que desistir é por vezes o único caminho e o que melhor nos protege. Pelo desassombro na abordagem às questões de saúde mental, na exposição das sessões de psicoterapia, nas mensagens cuidadosamente tatuadas sobre a pele. Pelos sorrisos e conquistas no regresso, demonstrando a importância de cada um encontrar a sua voz e conseguir fazer-se ouvir. Por mostrar como o cabelo pode ser um detalhe com tanta importância, mais ainda para uma mulher negra, numa modalidade em que durante décadas comportamentos abusivos de treinadores permitiram críticas permanentes a ginastas pelo peso ou aparência. Pela contundência na denúncia do impacto que as críticas negativas podem ter, ainda por cima quando são vazias ou cristalizadas numa definição de mulher como alguém permanentemente obrigado a justificar-se por não ser (nem querer ser) perfeito – sobretudo se a definição de perfeição é balizada por critérios ultrapassados de beleza.
Acima de tudo, e em síntese, porque Simone Biles nos obriga a pensar que cada pessoa é um universo de tumultos, mistérios e potencialidades que nenhum olhar ou juízo conseguem abarcar. E é quando ignoramos o ruído e nos concentramos naquilo que transportamos dentro de nós que recordamos – no caso de Simone uma lição vista em direto pelo mundo – o que a força de se ser inteiro consegue alcançar.