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Em pé, mal equilibrado, Alberto rodava o pescoço num movimento de saca-rolhas. Parecia que as recordações dessa noite estavam numa garrafa e a rolha não saía nem por nada.
- Não me recordo muito bem, avisou logo a abrir.
- Temos aqui muitas coisas, começou a juíza. Eu não sei o que o senhor fez ou não fez.
A juíza leu a acusação por inteiro. Era um caso simples, mas cheio de uma triste e banal miséria portuguesa que às vezes se esconde, mas sempre reaparece, anda por aí. Na noite de 13 de Julho do ano passado, numa abertura do confinamento Covid, Alberto foi preso depois de insultar na rua Lisandro, um homem negro. A formulação do insulto, por uma vez, não mandava a vítima para a suposta terra dele. Era uma variante duríssima, mas a juíza repetiu a frase como se lesse uma lista de compras:
- Aproximando-se, o senhor disse: "Preto, preto de merda, vai para a cona da tua mãe."
Alberto também atirou contra Lisandro uma garrafa de vidro. Lisandro desviou-se e a garrafa partiu a montra de uma loja de lembranças. Pequenos ímanes, Lisboas de eléctricos amarelos, barcos no Tejo, colinas, Jerónimos, alfamas, corações e sardinhas de loiça encheram-se de estilhaços de vidro. Veio a polícia. Mal perguntaram o que se passava, os guardas passaram a ser o alvo:
- Eu trabalho, seus paneleiros. Estão a proteger um preto, deviam era proteger-me a mim.
Tentou agredir os polícias. Deu um murro no abdómen do agente Pedro. Tentou morder o braço do agente André.
- Admito que há algumas coisas de que me lembro.
A juíza suspirou, cansada. Ninguém pode admitir a culpa de uma coisa de que não se lembra.
- Então devia ter lido isto com uma coisa de cada vez.
Com paciência, a juíza repetiu os passos da noite de Alberto, cortou a acusação em fatias, um bolo-mármore feito de ódio, racismo, preconceito, álcool e, em vez de açúcar, várias canecas amargas de bílis. Um bolo antigo mas cozinhado em Lisboa, Portugal, 2021, 2022.
- Ele ia contra mim, eu ia de muletas. Isso de preto do caralho não me lembro. Eu podia ter dito "tão?!", mas não me recordo de chamar esses nomes. Ele é que se atirou a mim. Ele atirou a pedra, eu é que me desviei.
A juíza realçou a selectividade da memória de Alberto.
- Ah, o senhor só se recorda do que ele fez...
- Foi uma confusão. Eu estava embriagado.
Nem isso interessava, afinal. Alberto não estava a ser julgado por crime de ódio contra Lisandro, este não apresentou queixa. O julgamento era por causa dos polícias:
- O senhor está acusado de resistência e coacção a funcionário e injúria agravada. Nem sequer é contra este senhor, mas com agentes da PSP. "Eu também trabalho, seus paneleiros, estão a proteger um preto, deviam era proteger-me a mim". O senhor disse isto?
- Estava embriagado, é possível, admitiu finalmente o homem.
Outro pormenor dramático: Alberto levantara no ar uma muleta para afastar os polícias, tentando agredi-los.
- O senhor usa muleta?, perguntou a juíza.
- Eu tenho 15 centímetros de diferença entre as pernas, esta é mais curta, estou à espera de ser operado.
E pôs a mão na perna atrofiada, como se testasse a consistência de um móvel. E lá do fundo da perna curta os dedos do pé espreitavam nas chinelas havaianas e pareciam esticar os pescocitos sujos para ouvir a confissão de Alberto, lembrando-se finalmente do que fez.
*Jornalista