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Quem vai ao Chiado, ao Largo de Camões – e ainda há pouco de lá saí vivo feito fura-vidas na multidão – escapando dos carros, dos tuk-tuks, tropeçando em turistas, em calções enfiados na nádegas como fios num painho, escorregando nas boutiques que espalham natas para cima de nós, quem vai ao Camões esbarra em muitas bizarrias. Mas poucas como as do jovem Afonso, muito poucas.
O jovem Afonso disse, aliás, que o polícia que o prendeu exclamou ao colega: “Eia, caraças, hoje não temos de fazer mais nada!”.
Afonso não apareceu no seu julgamento, nem a advogada oficiosa sabia dele, mas o seu primeiro depoimento para o mundo dos tribunais ainda existe, o interrogatório perante um magistrado. O crime de Afonso implicava medidas de coacção. Agora ali estávamos a ouvir a gravação, meses depois, e foi-me muito difícil, no princípio, entender aquilo que sempre se exige a uma boa história: o que é que estava em causa?
A polícia abordou-o porque Afonso trazia uma coisa qualquer, mas só ouvi que era na “cabeça”, não percebi logo que coisa.
– E o senhor tem duas profissões?, perguntou o magistrado. O senhor estava a referir uma outra profissão... Modelo e o quê?
– E o quê, respondeu Afonso.
– E o quê não é profissão nenhuma.
– Mas eu...
– O senhor vai fazer-me o favor... quando eu falo o senhor não fala! Modelo e mais o quê?
– Operador de máquinas.
– Operador de máquinas... quer falar quanto aos factos? O senhor é que sabe.
Uma coisa é falar, outra explicar. E o jovem Afonso disse, finalmente:
– É que eu comprar tudo de uma vez, ou comprar dez euros, mais dez euros, é uma diferença de preço absurda. A gente saiu da cervejaria e vamos a passar. Quando a polícia aparece e me vê, eu dei as coisas e ele diz ao colega “eia, caraças, espectáculo, já não temos de fazer mais nada hoje!”.
– O senhor vive cá em Portugal, apesar de ir ao estrangeiro, o senhor anda por países em que pode andar com droga à vontade?
– Eu ia a passar, e vão ter comigo.
– Sabe, é porque o senhor está num sítio em que há muita venda de droga.
– Mas eu não estava a vender droga. Era para mim e para o meu amigo.
Agora, finalmente, abre-se o mistério na boca do magistrado:
– No auto da polícia diz que ali há muitos vendedores de droga e que começou a ficar nervoso quando viu a polícia.
– Mas escolheram-me a mim, daquela maneira, porquê?
– Ouça, o senhor está num sítio onde estão sempre muitas pessoas a circular a qualquer hora. Escolheram-no a si por que razão, do seu ponto de vista?
– Se calhar, escolheram-me a mim por estar assim.
– Está a ver...? Por que é que o foram logo escolher a si, como é que foram descobrir que o senhor vinha com um carregamento de droga? O senhor tem de pensar nisso: a polícia pensou “olha, este tem droga”. E o senhor não tem só droga, o senhor tem uma balança para quê?
– Para ver se estava certo.
– Para verificar se estava certo. A droga era para si, mas o senhor é que traz uma balança para verificar se estava certo para si e para o seu amigo?!
– Sim.
– O senhor não sabe que não pode ter esta quantidade de droga e que não pode comprar droga para outras pessoas?
– Eu sei... mas o meu amigo disse, eh pá, vamos comprar... Nós só íamos...
– O senhor não sabe que isto é crime...? O senhor está aí a dizer que só íamos, só íamos... Em quanto é que isto lhe ficou?
– 650 euros.
Então o magistrado deu-lhe um conselho “mais ou menos imparcial”, que era falar com a advogada, porque, continuou, “eu não sei se é ingenuidade ou se é achar que isto faz parte de uma vida normal, francamente eu não percebo...” Afonso trazia consigo 200 gramas de haxixe prensado, mais 60 gramas em folhas e ainda 26 comprimidos de MDMA. E uma balança de precisão.
Mas como é que foi apanhado?
– O arguido foi abordado por chamar a atenção, porque estar naquele local com um passa-montanhas... provavelmente se não estivesse, nem sequer teria sido abordado.
O jovem não tinha antecedentes criminais. Agora arranjou uns antecedentes curiosos. No Camões com uma balaclava para neve, ou gorro de assaltos, enfiada na cabeça. Só se viam os olhinhos e a boca, que maneira de passar despercebido na multidão de Lisboa.
O autor escreve segundo a antiga ortografia