Vi, nas televisões, as forças armadas ucranianas a pendurarem bandeiras no centro de Kherson, bandeiras azul-céu e amarelo-seara na capital que há semanas Putin jurou ser sua "para sempre" (como é espúrio o sonho dos ditadores quando um povo se levanta pela liberdade) e pus-me a pensar no mecanismo do passa-culpa, porque isto anda tudo ligado, como dizia Eduardo Guerra Carneiro. Onde estaria o homenzinho agora? "Mobiliza-te tu, rato careca!" - como escreveu na rua um incrível russo, logo levado pelos serviços secretos. Espero que estejas vivo, incrível russo!
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E Putin escondeu-se da vergonha e do fracasso, passando culpas.
Mas concentro-me em Sónia. A menina nervosa foi a tribunal porque se deixou levar pelo namorado Paulo, dez anos mais velho, e acabou a traficar droga no pior sítio possível. Transportava pacotes de haxixe para dentro da cadeia da Judiciária de Lisboa, até ser apanhada em flagrante.
No dia da sentença, Sónia não apareceu. O advogado tentou ligar-lhe, sem conseguir. O ex-namorado Paulo também não veio ao tribunal porque estava preso e havia greve dos guardas prisionais. Assim mesmo, a juíza ditou a sentença e ficou esta imagem: uma jovem de 20 anos, "muito bonita, muito educada", foi detida por uma guarda prisional na revista dos visitantes. Trazia 14 gramas de haxixe no soutien. Sónia falou no julgamento e enterrou-se. O namorado, de 31 anos, o homem que lhe pedira várias vezes para transportar a droga, ficou mudo como um rato, nada fez para a salvar. Quando era preciso dar a cara, calou-se, tentando passar-lhe as culpas. No fim, concluiu a juíza: "O depoimento da arguida não mereceu credibilidade e o tribunal, face às respostas lacónicas e incoerentes da arguida, ficou convencido de que ela não foi, nem é, consumidora de produtos estupefacientes, pois não disse quanto é que consumia nem quanto é que gastava na sua compra".
"Começou por dizer que não se lembrava onde tinha o produto estupefaciente, mas depois já disse que o tinha no soutien. Esta indecisão não é compreensível, pois uma rapariga vai visitar o namorado ao estabelecimento prisional e é detetado que tem produto estupefaciente no seu corpo, é detida, não é possível que esta situação não fique marcada na sua memória e que não saiba exatamente o que se passou e o que fez nesse dia".
A juíza relembrou a guarda prisional: "Nas últimas vezes a arguida vinha sempre muito nervosa e, como constava que o arguido consumia produto estupefaciente, esta guarda prisional fez, ao contrário das outras vezes, uma revista minuciosa à arguida, perguntando-lhe mais do que uma vez se tinha algo com ela, ou seja, se tinha produto estupefaciente, até que, assim encostada à parede, a arguida a chorar acabou por mostrar e tirar o produto que tinha consigo para entregar ao arguido, para ele, dentro do estabelecimento prisional, vender a outros reclusos".
Sónia, a menina nervosa, foi condenada por tráfico de estupefacientes de menor gravidade a um ano de prisão, suspenso por um ano. Terá de prestar regime de prova.
O ex-namorado Paulo, já a cumprir pena de oito anos por vários crimes, como posse de arma e violência, vai ficar mais dois anos e cinco meses em prisão efectiva.
Uns começam as desgraças, outros vão atrás.
*Jornalista
O autor escreve segundo a antiga ortografia