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Foi estranho observar a empresária têxtil a rir-se, no tribunal, das ex-empregadas que defendiam a colega despedida pela cadeia de pronto-a-vestir. A empresária tinha o cabelo platinado e o efeito na sala de audiências, ao lado das ex-empregadas, era o de uma degradação progressiva de reflexos do espelho. A patroa era mais bonita, mais bem vestida e pintada que as empregadas e, no entanto, se elas melhorassem, ou ela piorasse, ficavam idênticas. Era o mesmo mundo em várias órbitas (esta patroa já não veste a roupa que fabrica e vende). Mas era estranho vê-la rir num caso que a devia envergonhar. No final de Maio, um homem magro e moreno, de roupa elegante, entrou na loja da Duque de Ávila e chamou a gerente, Delfina. José disse-lhe para assinar um papel. Delfina geria a loja há cinco anos e, conhecendo o homem, e os seus olhos de corvo mensageiro, viu uma viragem na vida.
- Eu não assino nada sem ler.
A ex-colega Virgínia contou que nesse dia a encontrou “muito mal”.
- Pediu-me para a acompanhar à esquadra. Vinha de rastos, psicologicamente. Tinha sido agredida verbalmente e estava em baixo.
O julgamento, no entanto, trata exactamente do contrário: José acusou Delfina de injúrias e ameaças. Que ao ler o papel que lhe estendia, ela gritou “porco nojento”, “cabrão” e “vais ver o que te vou fazer!”
José disse, na queixa, que estava apenas a cumprir a tarefa que lhe tinham dado, a de entregar o papel. Tinha sido insultado por uma colega, à frente de pessoas, sem qualquer culpa. Delfina respondeu:
- Ele agora diz que não é sócio da firma, mas na altura era. E eu nunca lhe chamei “nojento”. Disse “é nojento o que me estão a fazer”.
[José estava, no julgamento, sentado ao lado da empresária. Era para ele que ela ria, de vez em quando, e ele para ela.] Delfina continuou na sua voz de dois calmantes, voz desempregada:
- Queriam que eu assinasse o papel, que confessasse coisas que nunca cometi. Nunca roubei nada em cinco anos e em dois meses eu roubava peças a um ritmo exorbitante, onde é que eu punha a roupa?!
A nota de culpa tinha sido escrita com base no depoimento de uma ex-empregada da loja que tinha roubado dinheiro e roupas. Um dia precisara de dinheiro e guardara para si os pagamentos das clientes, mas passando os recibos. Não conseguiu repor a quantia e cada vez desviava mais. Até que as clientes começaram a receber em casa cartas dos serviços administrativos para pagarem as dívidas. A ladra era uma grande amiga de Delfina e estava a roubar à frente dela sem que ela o desconfiasse.
Cerca de um ano depois, a ex-colega pactuou com a tentativa de despedimento, dizendo que Delfina tinha sido conivente. Para todas as ex-colegas de Delfina foi só um meio para a despedirem. Delfina, “respeitada por todos os clientes - “todos diziam superbem dela”; “era sempre muito calma” -, tinha feito uma coisa perigosa no mundo do comércio têxtil: exigiu o pagamento das horas extraordinárias. O horário afixado publicamente nunca era cumprido. E veio a Inspecção do Trabalho e a empresa pagou uma coima. A partir daí, as trabalhadores passaram a ter direitos que não tinham. Mas para Delfina, que deu a cara na queixa à Inspecção, foi também aí que tudo piorou. Tem uma filha de 15 anos, vivem com o subsídio de desemprego. Ao fim de cinco anos, quando tentaram despedir a indesejável, descobriram que ela já era da casa.
Esta crónica vai de férias (também judiciais) e volta em Setembro.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)