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Com um falhanço tão estrondoso, seria desumano não dar a oportunidade ao rapaz.
A pessoa com menos autocrítica da Terra, se fizesse o que o rapaz fez, teria que dizer do acontecimento: foi ridículo; talvez entre na “short list” dos assaltos mais estúpidos; e por favor parem de me falar nisso, já pedi desculpa. Há uns anos, o rapaz furtou o interior de um carro. Levou discos, livros e deixou a convocatória da Polícia para prestar declarações sobre o crime anterior. Uma convocatória da Polícia é um papel que tem, entre outros dados, o nome e a morada do destinatário.
E ele deixou-a, esquecida, em cima do banco do carro que acabara de arrombar. É um bom cartão de visita ao estranho mundo do rapaz, nessa época. Agora avançamos no tempo e vemos os sentimentos mudarem nesta história, com rapidez. O caricato transforma-se em amargura e em lágrimas, mas há espécies diferentes de lágrimas que lutam nos olhos da rapariga grávida que fala no tribunal. As mais quentes são já de esperança.
- Tenho a certeza, disse a rapariga. O que ele quer agora é lutar pela vida. Pelo filho e por mim!
- Uma pessoa que é alcoólica, ou toxicodependente, é-o para toda a vida. O seu esforço tem que ser diário. Tem absoluta confiança nele?
- Sim, repetiu a rapariga, de mão esquerda na barriga.
- Ele está a trabalhar nas obras?
- Sim.
A rapariga levantou-se da cadeira das testemunhas. A barriga de cinco meses apontava-lhe o caminho no tribunal. Passou pelo rapaz e deitou-lhe um fortíssimo olhar de amor. O rapaz, no entanto, ficou sério e parado como um homem. Tinha os olhos verdes e o queixo quadrado. Estava à espera de ver se era desta que lhe resolviam a vida.
Sobre a convocatória deixada no carro, o procurador da República tinha-lhe perguntado directamente:
- Estava a gozar com a autoridade?
Ele respondera que não, fora distracção. Na verdade, não se lembrava.
- É sempre assim tão distraído?
Ele disse que, nesse dia, estava com certeza de ressaca, aflito por heroína. O rapaz drogou-se quatro anos. Esteve preso dois por vários furtos. Segundo a rapariga grávida, há ano e meio que não se droga. Pagou directamente o prejuízo da fechadura arrombada ao dono do carro. O procurador pediu a pena mínima e suspensa.
- Há aqui uma esperança de que o arguido não volte a transgredir.
A advogada do rapaz agradeceu a sensibilidade do procurador e comoveu-se. Metade da sala estava agora a chorar. A juíza não, tinha só uma voz maternal, mas choravam a rapariga grávida, a advogada e uma velhota sentada no último banco. Tinha uns olhos verdes claríssimos, o queixo forte, a elegância rude do rapaz. Parecia, pela roupa, que ou tinha saído ou ia agora para a praça, ou para a horta. Olhou para mim, o único estranho, a tentar saber no que ia dar a sentença. Não tinha percebido as implicações jurídicas das alegações do procurador na sentença. A mãe do rapaz tremia pensando que ele ia voltar para a prisão, e o neto a nascer.
- Quer dizer mais alguma coisa?, perguntou a juíza ao rapaz.
- Peço ao tribunal que me dê esta oportunidade, disse o rapaz.
Eu arrisquei e prometi à velhota: “Vai correr tudo bem, minha senhora”. Ela disse-me obrigado, olhando-me com aquelas duas esmeraldas, e não me desculpem se eu estiver enganado.

