Corpo do artigo
A noiva de João ganhou uma informação valiosa: a transparência do seu carácter. Há mulheres que passam a vida a perguntar-se o que faria o seu homem em caso de perigo, ela já sabe. O casamento é uma operação logística de grande complexidade. Principalmente quando é de amor, o mais perigoso. Duas pessoas que se casam por amor tendem a pensar que todos em volta estão apaixonados e, acreditando na beleza do Mundo, confiam até no homem das obras.
- Nós éramos um casal que queria casar e constituir família e fazer as obras da casa e estávamos a falar com profissionais.
A noiva de João ganhou uma informação valiosa: a transparência do seu carácter. Foi o que de melhor ficou daquela manhã de segunda-feira, assinada com a cicatriz. Alguns poderão ser enganados pela marca no nariz dele, por cima do bigode de antenas esticadas para o tecto: João tem cara de forcado e coração de objector de consciência. Há mulheres que passam a vida a perguntar-se o que faria o seu homem em caso de perigo, ela já sabe. Parece orgulhosa, no tribunal.
- O meu marido é uma pessoa calma. Depois de levar a cabeçada não ia reagir, não é como o senhor Armando. Acha que deviam ter andado os dois à tareia?! Não é o género dele!
As obras andavam bem. A noiva de João tinha analisado vários orçamentos e combinado um preço com o senhor Armando. Um era ligeiramente mais caro, mas já incluía a pintura. Armando respondeu-lhe que o seu preço passava a incluir a pintura, veja-se a flexibilidade da construção civil. João nem conseguia estar quieto.
- Inclusive, ajudei a levar coisas para cima, porque o prédio não tinha elevador. Levei o bidé!
Numa sexta-feira, foram ver os acabamentos. João ficou da cor do gesso.
- Não vimos espátulas, não vimos baldes...…
Os pedreiros tinham-se ido embora. E os noivos românticos transformaram-se em inspectores de alvenaria, especialistas do estuque. João apontava com a mão na sala de julgamentos.
- Aquela porta, por exemplo, se a esquadria está a 45 graus, vê-se que está torta. Se os fios de telefone saem pelos cantos, à solta...…
- Estava assim tão mal feito?
- Eu hoje ligo a máquina de lavar a roupa e sabe por onde sai o esgoto da máquina? Pela banheira!
Quando telefonaram, os pedreiros já estavam comprometidos para outra obra, claro que não a podiam perder. E queriam receber já. O senhor Armando escondera ao sócio que tinha incluído a pintura no preço…
A batalha foi segunda-feira. Estavam os quatro no apartamento e João ouviu a noiva falar alto na sala ao lado.
- Eu não pago enquanto isto não estiver tudo pronto!
João entrou e Armando perguntou-lhe:
- Também não quer pagar?
- É como diz a minha mulher, eu... bonk!…
Deu-lhe uma cabeçada de tal ordem, que espirrou logo sangue. Ficou apalermado e saiu e desceu para a vizinha, para tentar telefonar. Armando gritava que lhe cortava o pescoço e lhe deitava fogo ao carro; para um homem que faz casas tem feitio sísmico. Neste momento, todos temos uma dúvida, - Desculpe... O senhor acaba de ser agredido pelo senhor Armando e abre a porta e deixa lá a sua futura mulher com dois homens? Um deles violento, que faz ameaças de morte?!
- Eu pensei que à minha mulher não se apresentava perigo nenhum. Porque a minha mulher é que disse que não pagava e eu é que levei. O senhor Armando usa as mãos, eu a cabeça.
Não é bem verdade. O senhor Armando também usou a cabeça.
Mas fizeram-se os acabamentos (desconto), o casamento deu-se, o septo nasal endireitou-se, Armando foi condenado e o amor é um mistério.
O autor escreve segundo a antiga ortografia