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Uma vez aquilo durou pelo menos seis horas, contou Sandra, que assinalou a primeira chapada às três da madrugada. Depois, ao que se lembra, foi-se transformando num saco de boxe, quando de pé, e numa bola de futebol, ao ser enrolada no chão, até ser esticada para cima, puxada pelos cabelos, em ângulo para o último murro. O marido disse-lhe para estar calada, sua puta, e limpar o ranho e ela tirou as lágrimas e viu que eram nove da manhã, já andava o bairro quase todo na rua.
Noutra vez, antes de cortar os pulsos com um vidro, foi a travessa. Ela virou-se de costas e sentiu um relâmpago nos olhos, que veio antes da dor, muito mais rápido, e quando a dor chegou Sandra estava deitada no chão, a sangrar, e o marido, de pé, segurava uma travessa metálica de borda fina. Ganhou o hábito de lhe puxar os cabelos, partir a televisão, a loiça, apontar-lhe uma pistola, etc.
- Nem cabelo eu já tinha atrás. Ele arrancava-me os cabelos todos.
Qualquer pessoa via a pele se ela não tapasse a cabeça quando saía à rua.
- Quer ver?, perguntou Sandra, tirando a bandolete e abrindo caminho com os dedos até à cicatriz pequena, grossa e cinzenta como um verme.
Há três anos, Sandra agiu para acabar com a porcaria de vida que o marido lhe dava. Primeiro deixou-o, ao apaixonar-se por Miguel, um pescador, mas é claro que o marido a começou a perseguir como um lobo. Depois Sandra engendrou um plano patético que deveria ter atirado o marido para a prisão. Ela é que foi. Sandra foi condenada, em tribunal criminal, pelo crime de denúncia caluniosa. É um crime raro e normalmente difícil de provar. Mas Sandra confessou rapidamente que era culpada de ter apresentado denúncia contra o marido, dizendo que nessa noite este aparecera na rua, espancando-a a ela e ao namorado, ameaçando que a cortava com uma faca. Quando entrou na polícia, Sandra apresentava “múltiplas escoriações” no terço inferior dos antebraços, provocadas por um objecto cortante. Segundo Sandra, o marido tinha-a esfaqueado.
- Foi parvoíce minha. O corte de uma faca não é nada parecido com o de um vidro, disse ela depois da sentença.
- Parece-me um bocadinho maquiavélico este comportamento, embora revele alguma ingenuidade, dissera o juiz. Mas “os tribunais têm mais que fazer do que andarem a tratar de situações de farsa, inventadas pelas pessoas”. Sandra, vítima de “maus-tratos e perseguição” fora ao sítio certo (a polícia) por um motivo errado. Lá fora, a mãe de Sandra explicou:
- Deixe estar que eu falo por ela. Era muito nova e fugiu com o cigano. Ela tinha 16 anos e eu obriguei-a a casar-se.
Sandra fez que sim com a cabeça. Mas queria ser ela a falar do homem que, um mês depois de ter fugido com ele (fazendo-lhe um filho pelo caminho), lhe deu a primeira tareia. E lembrou como se cortou a si própria com um vidro.
- Eu ia na Rua do Sol com o rapazinho [o namorado, Miguel, que vai ser o pai do segundo filho de Sandra, a barriga já se vê], e apareceu ele no carro com uma gaja, começou a bater em mim e no rapazinho.
- Como é que se apaixonou por um tipo tão... enfim, tão violento?
- Apaixonar?, disse Sandra, a torcer o nariz e a puxar o fumo do cigarro. Era meu vizinho e já andava há muito tempo atrás de mim. Eu nesse dia estava chateada e ele olhou para mim e disse: “Vamos fugir?” E eu fugi. Não namorámos nem nada.