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Regressam os estudantes às aulas e penso na jovem Alice que durante longos meses apitava quando ia para as aulas, quando saía à rua e, com esse apito a tocar, pi-pi-pi... entrava em pânico. Começava o apito e era como se viesse aí um incêndio, um terramoto, várias desgraças juntas para a esmagar.
Entrei a meio do julgamento e não percebi logo o que era isso de haver uma rapariga que apitava, mas... pi-pi-pi-pi-pi..., depois percebi. A rapariga começava a apitar quando se aproximava alguém para lhe fazer mal, era uma espécie de morse a gritar-lhe SOS no pulso. E como tantas vezes o que mais parece é aquilo que é, a pessoa perigosa para Alice era um rapaz, o ex-companheiro.
O réu, este rapaz, estava de olhos no chão da sala de tribunal, a juíza interrogava testemunhas. Por videoconferência, à distância, um segundo rapaz identificava o agressor. Tinha conhecido a Alice na universidade.
- Um dia fomos sair à noite e ela estava com aquele aparelho... Durante o dia ia tocando, eu não ia ligando mas estava sempre a apitar. Na universidade também tocou, em Campo de Ourique também tocou. Fomos ao Urban, a discoteca, e o aparelho começou a tocar mais agressivo e depois vimos que o rapaz estava lá também, ao pé de amigos comuns nossos. Ela, sempre nervosa, pedía-nos que ficássemos atentos, até que me indicou o rapaz, que dispersou, se afastou quando viu que ela estava connosco.
Havia um terceiro rapaz que, ao ser interrogado, revelou um dos labirintos em que os corações se podem enfiar. Também conhecera Alice na faculdade, que lhe contara sobre um namorado.
- Nós estávamos quase com uma relação de namoro, contou o rapaz, com tristeza divertida na voz. Por várias vezes... começava a apitar, uma vez estávamos a jantar num restaurante japonês. O que eu lhe dizia era para ficar dentro do estabelecimento e eu vinha cá fora ver se via alguma coisa. Mas a única vez que o vi foi naquela noite no Urban...
- Como é que a Alice ficava?, perguntou a juíza.
- Começava a ficar nervosa e até telefonava à mãe, a chorar.
Eu ainda não percebera o início grave de tudo isto: a rapariga apitava depois de ter levado uma grande sova do namorado. Foi aí que um tribunal decretou que ele passaria a andar com uma pulseira no tornozelo e ficar proibido de se aproximar a poucos metros de Alice. Ele aproximava-se, Alice apitava.
Mas o irmão do agressor, chamado a testemunhar, contou coisas estranhas. Tinha sido culpa da droga e do álcool, que aliás destruíra toda a família, ele não falava ao irmão, a mãe não falava a nenhum dos dois, um dos filhos batera-lhe, a lista completa dos fracassos. Mas Alice tivera responsabilidades nesta relação tóxica. Às vezes estavam em casa, ele e o irmão, e ouvia-se um apito nas escadas. Era Alice que vinha ter com o agressor, queria estar com ele. Depois, já chegava sem o aparelho, tinha-o tirado do pulso.
- Eles não acabavam. Separavam-se, zangavam-se, depois conversavam...
Isto contaram o irmão e a mãe do agressor, que não tirava os olhos do chão do tribunal. Os abismos da alma têm um apito, mas não serve de nada.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia