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Um dia um homem morreu sem dar por isso. Agora os outros quase não dão pela morte dele. Há mortos que pedem infelizes jogos de palavras.
- Tente lembrar-se! - É difícil, respondeu o guarda.
Mas o guarda esforçava-se. O juiz pedia-lhe dados - e se possível provas - da culpa do condutor no atropelamento, mas o polícia encalhara no número de relatórios anual. Tinha os pés colados a uma placa de várias camadas de sangue, espesso como cimento. O procurador público também tentou que ele saísse dali.
- Mas não se recorda de danos, de como ficou o carro?
- Já vi acidentes mais graves, disse o guarda.
O “T” prateado de polícia de trânsito abanava-lhe na faixa vermelha do braço, para cima e para baixo, com o ombro. O guarda explicou:
- Há acidentes que nos ficam na memória, que nunca se esquecem quando os vemos. - E deste não se recorda? - Nada. O polícia não se lembrava de ter visto um homem velho rebentado por um carro na 2.ª Circular de Lisboa. Há quatro anos. Foi ele quem tomou conta da ocorrência, a primeira autoridade a chegar ao local. Ou a cabeça deste guarda não está boa, ou não está a do país todo. Somos esquecidos. O sangue nas estradas raspa-se com areia e com uma mangueira dos bombeiros. O juiz disse: - Os senhores pensam que mal fazem a participação o vosso serviço acabou. Não é assim. Só acaba quando depõem em tribunal! Durante um instante, o polícia ficou quieto, depois concordou com a cabeça. Um raspanete sobre profissionalismo e responsabilidade individual. Um guarda ouve de tudo.- Quando for a um acidente, tira as suas notas, até particulares. Passados uns anos, talvez possa reler e lembrar-se, sugeriu o juiz. O guarda tomou uma expressão concentrada. Ao chegar a casa, mesmo cansado do turno, depor a jaqueta azul na cadeira e abrir o livrinho dos mortos do dia. Anotar factos, sem sentimentos. A data, a hora, o local e as baixas. São notas particulares de um polícia de trânsito. Todos os dias crescem, era conveniente um livrinho maior. - Nós fazemos isto com provas! Se não nos trazem a prova, não fazemos julgamentos. Aliás fazemos julgamentos... com os resultados que se sabem. O juiz mantinha a voz oficial - a autoridade do meio-tom -, mas lá por dentro ele é que sabia. - E se o arguido então não fala, ficamos a zero. Nem morto tinha havido...O arguido, no entanto, falara e havia um caso e um morto. O condutor João relatou o choque. Imaginemos, no entanto, quantas vezes as disse, e quantas mais as ensaiou, a sós, desde aquela tarde. Acusaram-no de homicídio negligente, por “falta de cuidado, atenção e perícia” quando, num domingo de regresso, vinha alegadamente “a mais de 60 quilómetros à hora” na 2ª circular. É uma via miserável de se atravessar a pé, mas foi o que decidiu o morto. Três faixas de rodagem de cada lado. Perto, havia e há uma fácil passagem por baixo, a Estrada da Luz. - Eu ia na faixa mais da esquerda, estava bastante trânsito. Só vi o peão mesmo em cima dele.
Buzinou, travou e bateu-lhe de frente, “sensivelmente a meio do carro”.
- O peão apercebeu-se da pancada? Tentou desviar-se? - Tal como eu só o vi em cima dele, acho que não se apercebeu.
Um homem que não viu o momento antes da sua morte, nem soube porquê. O filho de João, o condutor, também ia dentro do carro. Ficou impressionado com o seu primeiro morto, só tinha nove anos. - No princípio ficou perturbado, mas era criança e já esqueceu...