A violência rasteja pelo chão como lava, queima-nos os pés, faz-nos cair. A mentira e a ilusão movem-se no tempo, mais ou menos rápidas, esburacando a verdade.
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Fez agora um ano que a Rússia invadiu a totalidade da Ucrânia por ar, terra e mar, de forma horrorosa e assassina. Falhou, mas com custos brutais à vista do Mundo e que se vão arrastar. Dois meses antes da invasão, eu estava na Praça Vermelha a ver crianças a esquiarem no gelo, com o Kremlin, o castelo de Putin, ao fundo. Não me passou pela cabeça que um ditador mesquinho, mas implacável, se preparava para, em breve, regar de sangue e terra queimada o século XXI, à maneira do XX. Em Moscovo, ao lado de amigos russos, eu pensava estar a viver a hipótese de uma Rússia democrática numa Europa em paz. Vi tudo muito mal, está visto. E hoje, incrivelmente, um ano depois da invasão, e depois de tudo o que assistimos, revejo em Portugal uma persistente surpresa: há ainda gente que justifica a invasão genocida da Ucrânia, admitindo os indescritíveis pesadelos provocados em quem luta pela liberdade e sobrevivência do seu país, da sua cultura e das suas crianças. Até podem falar em paz, mas é gente que se deslumbra com ditadores autocentrados, com o lado negro da força, a ideia de império. Conclusão: há sempre gente disposta a ver o Mundo todo ao contrário.
Bom, na pequena escala dos tribunais criminais portugueses é o que muitas vezes acontece. Uma teimosa adequação dos factos a tudo o que nos dá jeito, distorcendo o óbvio, fugindo do bom senso, da empatia pelos que sofrem e da própria ideia de justiça.
Talvez seja esta a natureza humana, tanto nas catástrofes globais como nas minúsculas quezílias. Há dias, por exemplo, assisti ao inferno pessoal de um dono de restaurante popular e de uma sua ex-empregada. Ela acusou-o de lhe ter dado uma bofetada no dia em que regressara ao restaurante para exigir ao patrão que lhe pagasse o resto do dinheiro que lhe devia. Acontece que o homem jurou, diante da juíza, que nunca lhe tocou. Que tudo começou quando, uma vez, o marido da empregada apareceu com um sobrinho, comeram e beberam o que quiseram, berraram cançonetas, dançaram com escândalo e, no fim, se recusaram a pagar. Nesse dia, disse o homem, decidiu que assim não podia continuar e chamou a empregada, pagou-lhe o que faltava e dispensou-a. Um dia, no entanto, ela voltou com o marido e o sobrinho e entraram aos gritos, pedindo dinheiro e partindo muitos pratos, até que veio a polícia. Antes disso, no corredor, acusou a rapariga, o ex-patrão deu-lhe uma bofetada.
"Com isso, eu perdi completamente a cabeça, eu deixei de ver, parti loiça", admitiu a rapariga. Mas o patrão jurava que nem lhe tocou. O homem tremia como um arame e a rapariga também. Andam há meses nestas lutas de tribunal. Ouvindo os tristes depoimentos, esta revolta mútua, percebi que o acontecimento se fará ódio eterno: irão contá-lo a filhos e netos, cada um na sua versão. O dono do restaurante e a ex-empregada atravessarão parte da vida consumidos neste passado. A comédia e a tragédia escrevem-se com as mesmas letras do alfabeto, disse Aristóteles. Maior ou mais pequena, em guerras de aniquilação ou briga de pratos, a violência atinge um momento irreversível, uma inexplicável vontade de destruição. E eu desejo que neste segundo ano de barbárie se faça justiça, condição da paz.
*Jornalista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)