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A História mostra-nos que não há nenhum direito que se possa dar por adquirido e que todos temos de estar vigilantes e atentos aos mais pequenos sinais de retrocesso. Esta semana, no mesmo dia em que o Senado francês aprovou a inclusão do aborto na Constituição, tornando-se o primeiro país do Mundo a proteger a liberdade das mulheres de disporem dos seus corpos, em Portugal um candidato a deputado e vice-presidente do CDS-PP defendeu, numa iniciativa de caráter eleitoral, que é preciso, “logo que seja possível”, tomar iniciativas no sentido de limitar o acesso ao aborto em Portugal, incluindo retomar a cobrança de taxas moderadoras. Vangloriou-se mesmo de, em 2015, o anterior Executivo PSD/CDS (antiga PaF) ter sido “um dos primeiros governos do Mundo” a fazê-lo. E manifestou o desejo de que, em breve, uma nova maioria de Direita possa voltar a pôr o tema na agenda. As declarações provocaram calafrios aos líderes da AD, que se demarcaram da intenção, mas o desejo ficou no ar.
Em 2022, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos também atentou contra as mulheres: acabou com o aborto legal, entregando a decisão da regulamentação a cada estado, sendo que 22 deles já tinham leis prontas para proibir ou dificultar o acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG). A decisão foi aprovada por seis juízes conservadores (metade deles nomeados pelo anterior presidente, Donald Trump) contra três liberais.
Na altura, a Organização Mundial de Saúde alertou para o risco de esse “retrocesso” vir a custar vidas junto das mulheres das comunidades mais pobres e mais marginalizadas, além de poder servir de inspiração para outros países. Como se percebe, a ideia tem seguidores em Portugal.
A monitorização que todos os anos é feita pela Direção-Geral de Saúde mostra que os números de IVG em Portugal têm vindo a cair, à exceção de uma inversão de tendência pós-pandemia em 2022 (para 16 202), em linha com outros países europeus. Não aconteceu a corrida ao aborto que alguns anteviam após a descriminalização, inscrita na lei em 2007, após o referendo do sim.
Há, sim, sérios problemas de acesso por resolver e esse deve ser o foco. A Reguladora da Saúde confirmou que nos cuidados primários a lei é praticamente desconhecida ou ignorada e que dos 55 agrupamentos e centros de saúde do país apenas cinco faziam consultas prévias de referenciação. Uma educação sexual clara, o acesso a consultas a tempo e horas, o seguimento adequado e a garantia da disponibilização de meios anticoncecionais às mulheres que deles necessitam seria um bom início de conversa.