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Demos a volta ao terreno da casa, para lá das cerejeiras, das figueiras, dos sobreiros e nada. Subimos a estrada até o alcatrão acabar e passar a ser terra vermelha, ao fundo a charca onde ele molhava as patas, ofegante, e onde as raposas e os coelhos bebem em silêncio, e nada, descemos pela vinha (este ano teremos de afugentar javalis), passando o poste furado pelo picapau até à ribeira, de novo invadida de ervas, cicuta grande, debaixo das aveloeiras, onde as libelinhas azul e verde cobalto acasalam em forma de coração e nada, o Bolero desapareceu. Faz agora 15 dias e o Bolero estava quase nos 15 anos, surdo, coxo, gordo e sempre feliz, ainda há semanas o vacinámos contra a raiva, e não creio agora que encontremos sequer os seus ossos, um pedaço de pêlo amarelo e branco. A serra de São Mamede era o seu domínio livre e ele vivia a percorrer a serra que agora o engoliu. O nosso Bolero foi intensamente procurado pelos vizinhos da outra colina, Deolinda e Manuel Vilela, campeões nacionais de tiro de precisão com chumbo, que há uns anos começaram, nas nossas ausências, a tratar dele, de maneira que a Deolinda e o meu pai, que partiu primeiro que o Bolero, falavam assim entre eles: “Eu sou a dona do seu cão”, e vice-versa, porque ele dizia “A senhora é a dona do meu cão”. O meu cãozinho, diz ela ainda. Obrigado por tudo, Deolinda. Obrigado também, Júlio Ceia Maçãs (e Zé Maria, dois irmãos que têm um nome que é sujeito, verbo e complemento directo, eles ceiam maçãs), que tanto nos ajudaram estes anos, sabem tudo de legumes saborosos e de verdes ovinhos de galinha-cocó e procuraram o Bolero nas valas e nas azinhagas secretas. Obrigado, Samuel, outro desta brigada de busca.
E mais me comoveu a morte do Bolero, sabendo que ele foi feliz, ao pensar num outro cão, o Gastão, que não conheço mas sei que foi infeliz muito tempo. Foi resgatado de um pátio de Lisboa porque os vizinhos da dona chamaram a polícia. Vi-a há dias no tribunal, uma jovem escoltada precisamente por um guarda que a fora buscar a casa, de manhã. Na primeira sessão do julgamento não apareceu nem explicou porquê. “Crime de maus tratos a animal de companhia.” Segundo os vizinhos, e provado pelas fotos tiradas ao pátio, o cão vivia sobre fezes, sem água suficiente, sem comida (eram os vizinhos que atiravam, com pena), sem casota. Ela diz que não é verdade, havia uma casota que não se vê no ângulo das fotos, havia gamelas para comer e beber, lavava tudo de dois em dois dias. Mas é verdade que passou dificuldades:
- Eu estava naquela, o cão é meu, vou conseguir dar a volta. Primeiro que eu admitisse que era melhor, para o cão, dá-lo para adopção, demorou um bocado. No princípio entrei em negação, mas depois percebi que era melhor para ele. Eu estava a passar dificuldades. Deixei de comer para dar de comer ao meu cão e pronto!
- Sabe que no dia em que a senhora entregou o cão, ele estava cheio de parasitas, de pulgas?, perguntou a juíza.
- Não sabia.
- Costumava levâ-lo ao veterinário?
- Sim, tinha as vacinas em dia.
Não tinha, não. E o animal carregava tantos parasitas internos que, na purga, largou fezes sangrentas. O pêlo baço, imundo, desidratado, subnutrido, ganindo noite e dia para a vizinhança, o fedor alastrando no bairro. Depois a rapariga chorou. Disse que a acusaram para a expulsarem daquela casa, o que conseguiram. Este fracasso estará para sempre marcado na pele da jovem.
- Eu sinto uma mágoa, uma dor intensa, quando penso que estou acusada disto. A única tatuagem que tenho de relevante no corpo é o nome do meu cão, Gastão!Adeus, Bolero, meu cão da serra. Longa vida ao Gastão.
*Jornalista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)