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Não via a cara, só a nuca do homem que, perto da hora do almoço, ouvia as alegações no tribunal. Este homem batia na mãe à frente do neto, isto é, do próprio filho, pegava numa faca e ameaçava a mãe de que cortaria os pulsos se ela não lhe desse dinheiro. O percurso do homem, já preso por vários crimes de roubo e de violência, oscilava entre o risível e o repelente. Por exemplo, dizia que tinha trabalhado anos e anos, só interrompendo durante mês e meio, quando afinal nunca trabalhara nada a não ser, precisamente, mês e meio na empresa “Aventuras Pitorescas”. Por exemplo, um dia foi ao Banco Alimentar contra a Fome, para alimentar o filho pequeno e a mãe, saiu de lá com dez latas de atum e logo foi trocá-las por cocaína. O procurador leu os factos provados, levantou a cabeça e disse:
“Dúvidas não nos restam que o arguido praticou o crime de violência doméstica agravada, na pessoa da sua mãe. Quanto à violência sobre o filho, o menor confirma alguns dos factos relativamente à avó, lembro-me de um ditado popular, e de uma expressão de... não me lembro agora de quem... relativamente à questão da violência doméstica praticada sistematicamente na presença de menores de tenra idade, que era o caso, 7 ou 8 anos, e é óbvio que é traumatizante. E não é só traumatizante como pode de tal forma estigmatizar o menor que - esperemos que não! - um dia o menor venha a praticar factos semelhantes. Aliás, o próprio arguido admitiu que a sua mãe foi vítima de violência doméstica durante anos. Vejamos o que o arguido presenciava e o que temos aqui hoje. Das duas expressões de que me lembrei, uma é o provérbio português:
- Filho és, pai serás, conforme o fizeres assim acharás.
E a outra expressão, não sei agora de quem é o autor:
- A mão que embala o berço governa o mundo.
[Bem, senhor procurador da República, trato eu dessa parte, sentado à mesa em que escrevo, o sol de um novo dia a bater-me nos olhos, teclo a frase - para isso serve a Internet - e vejo que a disse Abraham Lincoln, o grande presidente norte-americano do século XIX, citando o poeta William Ross Wallace, o que desgraçadamente nos lembra a mão cruel do presidente que começou agora mesmo, século XXI, a atacar a liberdade e a razão nos Estados Unidos. Tem a palavra de novo o senhor procurador:]
“A mão que embala o berço governa o mundo. Ou seja, aquilo que nós recebemos na nossa infância profunda até ao início da nossa juventude vai delinear de forma indelével a nossa personalidade, os nossos comportamentos futuros. Parece-nos que se tem de considerar que uma criança de tão tenra idade - não tinha 17, nem 16, nem 15 anos, tinha 7-8 -, quando teve de presenciar os comportamentos do seu pai para a sua avó, ver as agressões, obviamente pode ter ficado traumatizado e infeliz.”
O procurador pediu um mínimo de dois anos e meio de prisão efectiva. A advogada de defesa solicitou que o homem entrasse num programa vigiado de tratamento da toxicodependência.
Numa última palavra ao tribunal, antes da sentença, o homem pediu desculpas, mas afinal não eram desculpas, não admitiu que batera na mãe, só que lhe agarrou o braço, e a juíza interrompeu-o:
- Já percebi tudo, isso não é pedir desculpa.
A mãe dele soluçava a duas cadeiras de mim. Depois, enquanto era algemado para voltar para a prisão, o homem pediu à mãe:
- Dá cá um beijinho, vá, dá cá um beijinho.
A mãe olhou-o devagar, mas foi ter com ele, que já tinha as mãos presas atrás das costas, e deram um beijinho rápido, lábio com lábio, e a mãe voltou para trás, destroçada, e então reparei nos belos olhos do homem, enormes, brilhantes, vidrados, olhos de berlinde abafador.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia