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Dessa manhã violenta, numa escola de Lisboa, só chegaram ao tribunal impressões, um relato em segunda mão. Mas a força bruta e o medo têm a estrutura molecular dos ácidos, um pequeno frasco incolor, depois de entornado, começa a corroer, a furar, a azedar tudo o que toca, pele, cérebro, ossos, coração, vidas.
- Sôtora, perguntou a juíza à advogada, sabe da arguida?
- Não sei, disse a advogada de defesa, encolhendo os ombros.
- E quanto à vítima?, perguntou a juíza à oficial de diligências.
- A vítima escreveu a dizer que está doente.
Fez-se então silêncio e chegou-se à conclusão de que, para o julgamento, só viera uma testemunha. Chamaram-na.
- A senhora, que não tem nada a ver com isto, é a única que está presente, admitiu a juíza.
A mulher sorriu, não parecia aborrecida, tinha coisas para contar. Era professora, subdirectora de um agrupamento de escolas em Campo de Ourique, e coisas desagradáveis calham aos professores. Antes de mais, saberia reconhecer a acusada. O julgamento fazia-se na mesma, na ausência da acusada, que na próxima sessão será levada à força pela polícia, se necessário.
- Conheço a arguida no âmbito da escola, disse a subdirectora. É a mãe de dois miúdos que foram nossos alunos. Já não o são na actualidade, mas foram durante dois anos.
- Sabe porque é que está aqui hoje?, perguntou a procuradora.
- Presumo que tenha a ver com um assistente operacional que foi ameaçado por esta senhora.
- Quando é que isso aconteceu?
- Certamente há mais de um ano. Entretanto, o senhor também já não trabalha connosco... Ele foi impedido de sair da escola por esta senhora.
- Assistiu?
- Não, mas falei com ele depois. Estava muito perturbado.
- O que é que sabe da razão disto?
- Ele separou os filhos da senhora, que estavam à briga com outro garoto. E à hora do almoço ela fez-lhe uma espera. Ia com um familiar. O que eu sei é que o senhor Luís ficou em pânico. Estava aterrorizado. Não saiu sequer para almoçar.
A subdirectora contou que tinha sido ela a tomar conta do caso porque tinha a pasta dos não docentes, como os contínuos. Um deles era agora um homem em queda psicológica.
- Estava muito aflito. Ela tinha-o ameaçado. Tinha dito ao familiar para olhar bem para ele para ver quem ele era.
Isto é, o senhor Luís era agora o alvo de uma vingança a prazo.
- É verdade que depois o senhor Luís não conseguia enfrentar a escola e esteve uns bons meses de baixa psiquiátrica.
A subdirectora pensou um pouco, mas admitiu não conseguir reproduzir o que ele dissera, só que o homem estava apavorado. Um contínuo dentro da sua escola, em funções, com plaquinha com o nome pregada num polo azul, porque tudo aconteceu no Inverno e teria um polo vestido. Sobre a arguida ausente, disse:
- A arguida, infelizmente, era muito habitual ser chamada à escola. Os dois miúdos eram altamente problemáticos e ela costumava comparecer nas reuniões quando era chamada.
- Sabe de consequências para a vítima?
- Aquele episódio foi decididamente marcante na vida dele. Não conseguia enfrentar o lugar de trabalho.
E porque os cordas da violência nos vibram na memória, lembrei-me, num eco antigo, do meu liceu e daquele professor que foi espancado a murro, insultado e lhe partiram na cabeça um guarda-chuva, até à última vareta, internado no hospital. Foram a mãe e o pai de um aluno a quem tinha puxado as orelhas, diz-se que até quase lhe rasgar o lóbulo. E nunca mais o senhor foi o mesmo, nem ninguém à sua volta, nem sequer a cidade. E ninguém aprendeu nada de bom com esta dupla violência, mas aqui estou eu a lembrar-me.
*Jornalista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)