Hoje, ao ler as minhas notas de tribunal, dei um suspiro comprido como os navios nos nevoeiros.
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Saímos da barra mas voltamos ao cais destruído. Novos e velhos enrolados nas cordas roídas das famílias falhadas.
A rapariga contava à juíza as novidades do seu caso mas eram farrapos impossíveis de recoser, desperdícios de oficina. A rapariga tinha um rabo de cavalo ressequido. Puta, vai para o caralho e essas coisas assim, recordou. Muitas vezes me tratava mal. Dizia que eu queria era homens e andar na galderice, em telefonemas também, mas mais em sms, houve chamadas mas a maior parte das vezes eu já nem atendia porque já sabia o que era, e durou até meses depois de acabar a relação, até há bem pouco tempo, quando foi a confusão no centro de saúde.
A confusão: insultos no ar e um homem com um menino de cinco anos pendurado à ilharga, suspenso na anca do pai como um macaquinho num tronco, vem a mãe tentar levar o menino e o pai, sem nunca largar o filhinho dos dois, dá uma cabeçada tão grande na rapariga que lhe abre o sobrolho. O sangue suja a calçada portuguesa.
Como era num centro de saúde, tratou-se a mãe com rapidez, a única sorte em mais uma exemplar história de amores em Portugal.
Havia uma decisão prévia sobre a guarda da criança: a mãe ficava com o menino na semana, o pai aos fins-de-semana. Mas, naquele domingo à noite, o pai não devolveu o rapaz, queria levá-lo ao centro de saúde para a consulta de segunda-feira de manhã. E conduzi-lo de novo para casa.
A mãe da criança preparou as suas tropas e, noutra casa, o pai armou as brigadas para a batalha do centro de saúde.
Quando lá chegou, a rapariga não pôde entrar por causa das restrições covid e o rapazinho já entrara com o pai.
Eu comecei, lembrou a rapariga, numa troca de bocas com o pai do menino, que estava na varanda. O avô, pai do pai da criança, começou a dizer-nos que não iam dar-nos o menino, depois da consulta o pai desce com o pequeno, a mãe da rapariga avança para tentar resgatar o netinho e embrulha-se no chão à pancada com o velho compadre, entretanto aparece o pobre do primo Gonçalo que vinha ajudar mas que entrou em pânico, veio finalmente o genro, de menino ao colo, e desatou aos pontapés na sogra, mas isso já a rapariga não viu:
- Foi quando ele me deu uma cabeçada e já não vi nada.
- Teve dores?
- No momento, não. Depois é que começa.
O arguido era um jovem lavador de janelas com uma clave de sol tatuada no pescoço. No tribunal, além da acusadora, mãe da criança, encontrara duas mulheres vestidas de negro, a interrogá-lo, a quererem saber coisas, umas chatas. Disse que não deu cabeçada nenhuma.
- Ela sangrou, agora como sangrou, não sei.
Falava como se cuspisse, garantindo a condenação.
Não estou agora longe do tribunal onde isto aconteceu. A andar, chegaria lá em dez minutos e é provável que assistisse a coisas novas parecidas. Violências domésticas.
Miséria verbal. Crianças puxadas pelos braços para as rasgarem ao meio. Do Tejo chega uma neblina rara de meio da tarde, é um Outubro febril. Os navios vão pelos oceanos no meio de guerras, fomes, frios, entre ódios fundos como os oceanos e os amores que se afundam.
No momento não dói, depois é que começa. Quando é que isto acaba? Isto, nunca. Nós, um dia.
o autor escreve segundo a antiga ortografia
Jornalista