Fui segunda-feira à Gulbenkian ouvir o relatório da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Conto casos de tribunal há mais de trinta anos e admito que a coreografia me lembrou outros dias: um colectivo virado para nós, lendo uma lista de crimes e de falhas graves de justiça a uma série de bispos sentados na fila da frente, acusados no banco dos réus.
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Estes bispos podem ter finalmente colaborado, abrindo a hipótese para o início da descoberta da verdade, mas continua a ser tudo menos uma confissão integral e sem reservas. No final, dei pessoalmente os parabéns aos membros que conheço na comissão: Laborinho Lúcio, que no momento inventou a brilhante expressão "houve pelomenosíssimo 5000 vítimas", e ao rigor e emoção de Daniel Sampaio e de Catarina Vasconcelos. Alargo agora o meu agradecimento a Pedro Strecht e aos restantes membros da comissão, Ana Nunes de Almeida e Filipa Tavares. Tirei quatro conclusões básicas: há cem sacerdotes no activo que têm de ser imediatamente expulsos das sacristias e altares e colégios e seminários e grupos de escuteiros; há 25 acusações ainda não prescritas, agora enviadas ao Ministério Público, que deverão ser investigadas e, caso se provem, severamente punidas com prisão; a Igreja terá, como noutros países, de pagar despesas médicas de acompanhamento psicológico e indemnizações às vítimas; por último, é essencial que haja um pedido de desculpas formal, ecuménico, irreversível e genuíno, dos bispos portugueses e do Papa, durante as cerimónias da Jornada Mundial da Juventude, no Trancão. Estava a pensar sair de Lisboa nesses dias confusos, mas se calhar fico para ouvir a confissão dos crimes em Portugal, e para todo o mundo, naquele palco milionário.
Vou agora ser mais pessoal, foi uma semana dura. Vesti na Gulbenkian um blazer que não usava desde um trabalho na gelada Sibéria em 2021 - as voltas que o mundo deu... - e, inesperadamente, no bolso descobri uma folha rasgada de livro, oferecida por um jovem russo, uma página do romance de ficção científica Dune, de Frank Herbert, onde li: "A verdade pode ser pior do que imaginas, mas até factos perigosos são valiosos se estiveres treinado para lidar com eles." À tarde, encalhei num verso de Silvia Plath: "Há já trinta anos que trabalho/ para dragar o lodo da tua garganta."
Finalmente, lembrei-me do escritor James Joyce, que estava numa "guerra pessoal" contra os dogmas da Igreja Católica, mas a quem agradeceu toda a maldade, violência, culpa, que seriam matéria de escrita. Cada um faz da vida o que quer, com o que pode.
Tive alguns abismos: um desastre na auto-estrada com os meus filhos em 2004, a morte da mãe dos meus filhos em 2009, balas que rodopiaram por cima da minha cabeça na Bósnia, em 1993. Momentos em que a gente ou fica, ou vai.
Mas há outro que nunca contei em público: aprendi a manejar um machado nos escuteiros e, se o estado do mundo me obrigasse, poderia ir para o bosque construir uma cabana. Mas há 41 anos, num intercâmbio de escuteiros alentejanos e espanhóis, fui a Madrid e aí fui atacado por um padre dos escuteiros. Um tal Ramón, de um tal colégio La Salle. Eu tinha acabado de fazer 14 anos.
À noite, uns ruídos de lodo, e qualquer coisa que se mexia no quarto. Acordei com o padre a mexer-me nos genitais. Como um monstro que saltava do escuro, debaixo da cama. Em pânico, estupefacto, enojado, reagi com um grande berro e um murro no abusador, o que o fez recuar. Não sei se lhe acertei, pelo menos
tentei. Mas hoje sei, como soube todos os dias da minha vida (porque é como se fosse ontem) que se não tivesse reagido assim seria uma pessoa diferente hoje, e por isso o meu coração está com todas e todos os que foram assaltados, violentados por padres em quem confiavam e que não puderam reagir. E com todos os que agora vão finalmente contar o seu inferno.
Essa gente, esses pios criminosos, só retrocedem com medo de serem apanhados, nunca por arrependimento. E quando são apanhados pelos bispos, são transferidos para tudo recomeçarem...
A Igreja Católica, agora a Portuguesa, foi apanhada. Chega de mentiras, de egoísmo e de repugnante hipocrisia. Não é pedir desculpas, é altura de pagar. Chega de chamar "falta" e "falha" ao que é crime. Apanhem-nos. E mandem um lembrete ao bispo de Beja e a todos os esquecidos.
*Jornalista