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Começando pelo fim, eis o que achou a juíza do método da polícia, depois da sentença: “Uma vergonha...”
Quatro ou cinco homens negros saem de um prédio, conhecido como supermercado de droga, no Bairro da Cruz Vermelha. Uns entram num Audi, outros num Smart. Dois polícias que passavam também de carro, numa operação de rotina, mandam-nos parar. O condutor do Audi foge. Tiros para o ar. É apanhado. Não tem carta de condução. No final, encontram-se no Audi 84 doses de heroína, dinheiro. No Smart, um dos jovens trazia uma navalha-borboleta. Acusação: tráfico de droga agravado, que pode dar prisão superior a cinco anos. E que tráfico viram os polícias? Nada, zero, népias.
Algumas conversas no julgamento entre a juíza e os polícias.
- O senhor João nesse dia foi detido por ter 360 euros?
- Sim, pela minha experiência profissional... o senhor João é conhecido por traficar estupefacientes, disse o guarda.
- O que é que o senhor estava a fazer? Houve actos de tráfico?
- Nesse dia, não.
- Há pessoas que gostam de andar com dinheiro, com um molhinho. Sabe de onde vinha o dinheiro?
- Não responderam.
- Não responderam, nem tinham de responder!
- É minha convicção... é nossa convicção que...
- Mas isto não pode ser com convicções!, enervou-se a juíza.
Fernando, o condutor sem carta:
- Quero falar. A droga não estava no meu pé. Estavam a dizer que estava nos pedais. Eu sou tão estúpido para pôr aquilo nos meus pés?! Meu, não era!
A advogada de defesa:
- O que nasce torto tarde ou nunca se endireita. Esta acusação é o exemplo do velho provérbio. Mandam parar sem qualquer motivo aparente, não vêem qualquer tipo de transacção. Só que os viram sair do Bairro da Cruz Vermelha. Encontram 360 euros no carro do João e pensam que é uma fortuna! Como ele aqui declarou, era trabalho de biscates. Era dinheiro fruto do trabalho que tinha. Não foi feita prova nenhuma. O crime de tráfico não foi provado. Exigimos a restituição do dinheiro.
Mas a melhor de todas foi quando Iani pediu para falar. Iani era o único que viera escoltado e algemado, trazido da prisão. A cumprir pena por crimes anteriores. Estava sorridente:
- As embalagens que lá estavam, estavam todas comigo. Isso é mentira da polícia.
- Que mentira é essa?, disse a juíza, de olhos divertidos.
- Tudo o que disseram os agentes. Eu é que levava as embalagens todas. Eu estava de passagem.
- Mas foi detido! Isto finalmente está a ficar interessante!
- Estava tudo comigo. Eu estava de passagem, fui abordado com aquilo na minha posse, todas as embalagens.
- Onde é que as transportava?
- Tudo no meu bolso. Aliás, eu tinha mais dinheiro, tinha 200 euros e só apareceram 45... O resto eu não sei.
- Mas explique-me lá porque é que andava a passear com 84 doses de heroína!
- Doutora, isso só me cabe a mim.
- E qual era o destino da droga?
- Doutora, isso cabe-me a mim.
- Tem ideia de quanto valia?
- Tenho.
- E como é que sabe?
- Se calhar comprei-a, não sei... Não percebo a sotôra... e eu estou assumir!
- Mas porque é que está a assumir? O senhor é consumidor?
- Não.
E de repente os dois já se riam do descaramento, Iani e a juíza. Ele sabia que ela sabia que ele estava a mentir. Mas Iani está preso e os outros amigos não, que se dane. Condenados, genericamente, por posse de droga, posse de navalha-borboleta e por condução ilegal. Mas nenhum irá preso por crime de tráfico agravado. Não foi por Iani se “dar à morte”: é que os polícias não viram tráfico nenhum. A prova - uma vergonha, suspirou a juíza - era só a convicção.