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Quando, no ano de 732, um cronista cordovês precisou de categorizar as tropas de Carlos Martel, o chefe militar franco que, junto a Poitiers, saiu ao encontro dos muçulmanos comandados por Ad-der-Rahman, do califado Omíada que então dominava a Hispânia, a sua pena hesitou. O contingente de Martel compunha-se de uma mistura de soldados da Aquitânia e da Austrásia. O cronista, um moçárabe, não sabia bem como nomeá-los. A dado passo, optou pelo termo latino “europenses”: europeus. Pela primeira vez, “europeus” designava uma fraternidade, uma comunidade, e não uma simples origem geográfica. Assim germinava, no século VIII, o conceito de um exército europeu.
Durante séculos, a ideia de Europa foi moldada por inimigos externos, a começar pelos otomanos: “agora invadem-nos e matam-nos na própria Europa, na nossa pátria”, protestava o Papa Pio II, após a queda de Constantinopla.
A Europa é uma invenção de letrados e de soldados.
Em 1950, sobressaltado com a Guerra da Coreia e com a ameaça soviética, Winston Churchill foi ao Conselho da Europa advogar a “criação imediata de um exército europeu”. Embora não tenha vingado, o projeto de uma Comunidade Europeia de Defesa (CED) precedeu, em 1951, a criação da CEE. Nesse mesmo ano, Raymond Aron defendia que a unificação militar não significava o remate de um projeto político europeu, mas a pré-condição deste.
Em plena Guerra Fria, Churchill e Aron precipitaram-se. O exército europeu nunca se consumou e a Europa conheceu quase oitenta anos de paz. A defesa comum permaneceria uma miragem. Agora, três anos passados sobre a invasão da Ucrânia e três meses sobre a eleição de Trump, o tabu esboroa-se. Em Bruxelas já se regateia o envio de “europenses” para esse país flagelado.
Talvez um exército europeu pudesse ser o fermento de uma forma superior de patriotismo: um patriotismo europeu. Só que o projeto europeu, para o mal e para o bem, é incompatível com o imediatismo, hoje como nos anos 50. Uma coisa é criar as Forças Armadas da Europa, outra é fazer uma colagem de soldados de alguns estados-membros, a cuspo, e dar-lhes ordem de marcha para a fronteira de uma potência nuclear paranoica, consumida por uma doentia insegurança existencial.